colecções disponíveis:
1. Lendas de Sintra 2. Sintra Magia e Misticismo 3. História de Sintra 4. O Mistério da Boca do Inferno 5. Escritores e Sintra
6. Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, Séc. XVIII 7. Contos de Sintra 8. Maçonaria em Sintra 9. Palácio da Pena 10. Subterrâneos de Sintra 11. Sintra, Imagem em Movimento


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Curandeiro de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic de Merveilleux - Parte VII



© Pesquisa: O Caminheiro de Sintra
Imagem: autor Flickr Débora Figueiredo


A Serra de Sintra no cair do dia
"Antes de abalar de Sintra não quero deixar esquecido um caso tão curioso como é o da senhora Pedagache. Nas rochas e descampados que se estendem pelos altos da serra de Sintra até ao pormontório da Lua, a que hoje chamam da Roca, encontra-se uma superfície de três léguas habitada pelos lobos e por alguns guardadores de cabras a que os portugueses chamam cabreiros. Um destes pastores selvagens, que gozava fama de ser hábil em compor membros partidos, foi chamado para examinar os membros estropiados de um sujeito meu conhecido que usufruía uma pensão do rei e havia dado um grande trambolhão. O pastor surpreendeu a todos os assistentes pela sua maneira de tratar e singularidade no pensar. Tinha o aspecto de um urso. Sem prestar atenção ao que lhe diziam do estado do enfermo, fê-lo pôr completamente nu e estendido em cima de uma mesa. Depois disse: “Não podem falar nem estorvar-me no meu trabalho e se alguém disser qualquer coisa, vou para donde vim e abandono o doente.” Todos tomaram o partido de obedecer.

Então o pastor, agarrando o doente com a mão esquerda e passando-lhe a mão direita por todo o corpo, em determinada altura tocou nos ossos deslocados no tronco e nos joelhos. O enfermo com as dores soltou gritos lancinantes, mas os seus sofrimentos não duraram mais que alguns minutos. Contou depois que o pastor o havia dominado com tal força que mesmo que quisesse não se poderia ter mexido. Esse cirurgião selvagem mandou depois o doente beber uma infusão de ervas aromáticas, ficar de cama bem abafado e não se mover nem sequer para a satisfação de qualquer necessidade. Finalmente prometeu-lhe que dentro de dois dias poderia andar e anunciou que voltaria a visitá-lo.



Feita que foi a operação ofereceram ao pastor como recompensa duas moedas de ouro. Recebeu-as e atirou-as para o chão, dizendo a quem lhas dera: “O pobre de Cristo que vive das esmolas do rei certamente precisa de dinheiro porque vive das esmolas do rei. Eu, por mim, não sei o que hei-de fazer do dinheiro do rei nem do seu.” Ofereceram-lhe depois de comer e respondeu: “Julgam que eu seria tão parvo que teria vindo de tão longe sem ter comido o suficiente para me sustentar até ao regresso?” Mandaram depois trazer-lhe vinho e então ele disse: “Faço como o rei nosso senhor e amo que assim como eu, passa sem ele.” Por fim quiseram dar-lhe um cavalo para o pouparem à fadiga do regresso. Recusou e declarou: “Não aceito; seria não ter respeito à montanha passá-la sem pôr pé em terra, mas não sou ladrão. Deus castigar-me-ia mandando as enfermidades com que castiga os ricos não me servindo das pernas que me deu.”

Um folgazão, para se divertir, perguntou-lhe se na montanha havia muitos lobos. Respondeu-lhe: “Sim, mais que bons cristãos há em Lisboa. Ali, como tal, só conheço ao rei, meu senhor, que ainda há pouco bem mostrou quanto tem a Deus e por isso Deus não deixará de abençoar a sua descendência.”

Tendo visto um dos pressentes mastigar tabaco, pediu-o. Deram-lhe algum e manifestou gostar. Depois presentearam-no com um rolo inteiro; mirou-o atentamente, deu-lhe muitas voltas, cortou um pedaço e devolveu o restante dizendo que só aos domingos e dias de guarda, em que estava ocioso, mascava tabaco, rezando a Deus e a Sua Santa Mãe, sem assim os ofender.

Surpreendeu-me o carácter singular desse pastor de quem me não posso lembrar sem ao mesmo tempo fazer reflexões sobre a dita deste homem a quem o trato do mundo não tinha corrompido e que, sendo o senhor das paixões de que ordinariamente somos escravos, era a imagem viva da simplicidade dos nossos primeiros pais. A sabedoria que havia em todas as suas palavras, o seu afastamento das coisas terrenas, a moderação no uso daquelas que se permitia, o seu temor a Deus e respeito ao rei, tudo isso me pareceu sempre digno de admiração e me fez considerar na felicidade de que gozariam os homens se fossem capazes de se conter nos limites que a Natureza lhes prescreveu. Compare-se esse solitário com aqueles outros de que passo a falar.
"


© O Caminheiro de Sintra


As outras partes de Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, relato do século XVIII:

I. Castelo de Sintra, Subterrâneos de Sintra, Descrição Física, e a Chegada - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte I
II. Subterrâneos de Sintra e os Seus Tesouros - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte II
III. Cisterna do Castelo dos Mouros e Sua Descoberta, ou a Segunda Parte dos Tesouros de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte III
IV. O Magnetismo de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte IV
V. As Visões de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte V
VI. A Senhora Pedagache - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VI
VIII. O Convento dos Capuchos, e os seus Capuchinhos - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VIII



Créditos da fotografia: Autor Flickr Débora Figueiredo