© Pesquisa: O Caminheiro de Sintra
Imagem: autor Flickr Débora Figueiredo
A Serra de Sintra no cair do dia |
Então o pastor, agarrando o doente com a mão esquerda e passando-lhe a mão direita por todo o corpo, em determinada altura tocou nos ossos deslocados no tronco e nos joelhos. O enfermo com as dores soltou gritos lancinantes, mas os seus sofrimentos não duraram mais que alguns minutos. Contou depois que o pastor o havia dominado com tal força que mesmo que quisesse não se poderia ter mexido. Esse cirurgião selvagem mandou depois o doente beber uma infusão de ervas aromáticas, ficar de cama bem abafado e não se mover nem sequer para a satisfação de qualquer necessidade. Finalmente prometeu-lhe que dentro de dois dias poderia andar e anunciou que voltaria a visitá-lo.
Feita que foi a operação ofereceram ao pastor como recompensa duas moedas de ouro. Recebeu-as e atirou-as para o chão, dizendo a quem lhas dera: “O pobre de Cristo que vive das esmolas do rei certamente precisa de dinheiro porque vive das esmolas do rei. Eu, por mim, não sei o que hei-de fazer do dinheiro do rei nem do seu.” Ofereceram-lhe depois de comer e respondeu: “Julgam que eu seria tão parvo que teria vindo de tão longe sem ter comido o suficiente para me sustentar até ao regresso?” Mandaram depois trazer-lhe vinho e então ele disse: “Faço como o rei nosso senhor e amo que assim como eu, passa sem ele.” Por fim quiseram dar-lhe um cavalo para o pouparem à fadiga do regresso. Recusou e declarou: “Não aceito; seria não ter respeito à montanha passá-la sem pôr pé em terra, mas não sou ladrão. Deus castigar-me-ia mandando as enfermidades com que castiga os ricos não me servindo das pernas que me deu.”
Um folgazão, para se divertir, perguntou-lhe se na montanha havia muitos lobos. Respondeu-lhe: “Sim, mais que bons cristãos há em Lisboa. Ali, como tal, só conheço ao rei, meu senhor, que ainda há pouco bem mostrou quanto tem a Deus e por isso Deus não deixará de abençoar a sua descendência.”
Tendo visto um dos pressentes mastigar tabaco, pediu-o. Deram-lhe algum e manifestou gostar. Depois presentearam-no com um rolo inteiro; mirou-o atentamente, deu-lhe muitas voltas, cortou um pedaço e devolveu o restante dizendo que só aos domingos e dias de guarda, em que estava ocioso, mascava tabaco, rezando a Deus e a Sua Santa Mãe, sem assim os ofender.
Surpreendeu-me o carácter singular desse pastor de quem me não posso lembrar sem ao mesmo tempo fazer reflexões sobre a dita deste homem a quem o trato do mundo não tinha corrompido e que, sendo o senhor das paixões de que ordinariamente somos escravos, era a imagem viva da simplicidade dos nossos primeiros pais. A sabedoria que havia em todas as suas palavras, o seu afastamento das coisas terrenas, a moderação no uso daquelas que se permitia, o seu temor a Deus e respeito ao rei, tudo isso me pareceu sempre digno de admiração e me fez considerar na felicidade de que gozariam os homens se fossem capazes de se conter nos limites que a Natureza lhes prescreveu. Compare-se esse solitário com aqueles outros de que passo a falar."
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As outras partes de Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, relato do século XVIII:
I. Castelo de Sintra, Subterrâneos de Sintra, Descrição Física, e a Chegada - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte I
II. Subterrâneos de Sintra e os Seus Tesouros - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte II
III. Cisterna do Castelo dos Mouros e Sua Descoberta, ou a Segunda Parte dos Tesouros de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte III
IV. O Magnetismo de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte IV
V. As Visões de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte V
VI. A Senhora Pedagache - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VI
VIII. O Convento dos Capuchos, e os seus Capuchinhos - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VIII
Créditos da fotografia: Autor Flickr Débora Figueiredo