colecções disponíveis:
1. Lendas de Sintra 2. Sintra Magia e Misticismo 3. História de Sintra 4. O Mistério da Boca do Inferno 5. Escritores e Sintra
6. Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, Séc. XVIII 7. Contos de Sintra 8. Maçonaria em Sintra 9. Palácio da Pena 10. Subterrâneos de Sintra 11. Sintra, Imagem em Movimento


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Damião de Góis e os Tritões de Sintra - A Fantástica Descrição do Século XVI


© Pesquisa e texto: O Caminheiro de Sintra
Imagens: Arquivo do Caminheiro de Sintra (duas primeiras imagens); (restantes imagens e respectivamente) autores Flickr Grosvnor, Donnr MB, prebelo


Damião de Góis, Urbis Olisiponis Descriptio

 O fantástico sempre se encontrou presente no passado da história, algumas vezes escondendo-se nos mais inesperados sítios. No seu Urbis Olisiponis Descriptio, ou em português Descrição da Cidade de Lisboa, de 1554, Damião de Góis menciona algumas vezes a zona da Serra de Sintra e do Cabo da Roca.

 O mais admirável torna-se contudo, as suas palavras acerca de relatos de Tritões quer na costa Sintrense, quer na entrada Tejo acima, relatos dos tempos da Roma Antiga, bem como outros de Damião de Góis contemporâneos.

 Curioso é também aquilo que facto aparenta ser, de nunca ninguém ter relacionado de forma que seja, este relato com a Janela do Tritão no Palácio da Pena.

Descrição da Cidade de Lisboa, 1554
"Não me atrevo a estabelecer sem bases a origem do nome de Lisboa; talvez isso parecesse a muita gente um caso fabuloso - tão fabuloso como aquele facto que Varrão foi buscar a Justino, o qual escreve que "na Lusitânia, onde está a cidade de Lisboa, no monte Tagro, as éguas ficam prenhes só pelo vento".

Note-se que Plínio e Solino admitem igualmente este facto. Contudo, o mesmo Justino referindo-se a isto, assevera, com afinco, que tal opinião é errónea. "Na Lusitânia", diz ele, "conforme muitos autores narraram, junto ao rio Tejo, as éguas concebem por meio do vento. Mas estas lendas são originadas por causa da fecundidade das éguas e da grande quantidade das manadas; pois estas são em tão grande número na Galiza e na Lusitânia e correm tão velozes que não sem razão parecem concebidas pelo próprio vento."

Esta explicação de Justino realmente não me desagradaria, se os físicos não tivessem razões para provar que a Natureza costuma produzir e procriar muitas coisas sem as fêmeas terem contacto com machos. E assim, Dom Rodrigo, arcebispo de Toledo, admite, na sua História, com grande soma de argumentos, aquele passo de Varrão.

"...inesperadamente saltou para um rochedo um tritão macho, com a barba comprida, longos cabelos, peito crespo, rosto não muito disforme, e aspecto perfeitamente humano."


O Monte Tagro, que Varrão menciona, é, segundo creio, aquele mesmo que nós chamamos Sintra, donde avança para o mar o Promontório da Lua, situado a vinte e quatro mil passos, mais ou menos, de Lisboa; actualmente chama-se a Rocha [nota SPS: Cabo da Roca], ou, em latim, Rupis.

Na encosta desse monte ergue-se agora uma cidadezinha, de admirável amenidade e suavidade pelo sítio e pelo clima, enobrecida com um grandioso e magnífico palácio dos Reis de Portugal, que, do nome do monte, se chama Paço de Sintra.

Este monte tem grande abundância de animais selvagens e de aves, e é de tal maneira propício, por causa da especial bondade do solo, para o pastio de rebanhos, que facilmente nos podemos persuadir de que as éguas, naquela região, concebem sem auxílio alheio.

"...os tritões às vezes saltavam para terra e, pouco a pouco, se habituavam a brincar na praia; de que eles, de quando em quando, saíam do mar, porque os naturais os atraíam com a doçura da fruta que naquela região é muito abundante..."

Ao lado do mesmo monte, na direcção do Oceano, a uns dois mil passos, está situada, num outeiro, uma aldeia, a que os naturais chamam Colares.

Não muito longe desta aldeia, debaixo dum rochedo sobranceiro ao mar, há uma gruta, batida pelo Oceano. As ondas penetram lá dentro, e, entrechocando-se, produzem enorme ruído. O nosso povo julga que ali foi visto outrora um tritão a cantar com a sua concha.

Eu realmente não me atrevo a afirmar nada a este respeito, tanto mais que o litoral pode ser visto e examinado pelos que o vão costeando. Já Plínio dizia, que, nos tempos de Tibério César, fora visto e ouvido na Lusitânia um tritão. "Uma embaixada", escreve o historiador, "vinda expressamente de Lisboa e mandada a Tibério, testificou que numa gruta se avistara um tritão a cantar com uma concha, apresentando-se com o aspecto conhecido."

Para confirmar esta opinião, julguei que não devia deixar no esquecimento o que vai seguir-se: Nos nossos dias encontram-se, em muito lugares próximos àquela praia, uns homens que os habitantes deram em chamar, por causa da sua natureza e origem, homens marinhos, por apresentarem na superfície da pele umas asperezas ou escamas espalhadas quase por todo o corpo, como se fossem vestígios da sua antiga raça. E crêem os habitantes que os tais homens devem a sua origem e a sua natureza aos homens marinhos ou tritões.

Tudo isto provém de que, conforme reza a tradição, os tritões às vezes saltavam para terra e, pouco a pouco, se habituavam a brincar na praia; de que eles, de quando em quando, saíam do mar, porque os naturais os atraíam com a doçura da fruta que naquela região é muito abundante; de que alguns tritões foram apanhados por afável astúcia dos habitantes, e, depois, com carinho, educados num género de vida mais civilizada e menos selvagem.

Se a alguém parecer fabuloso que os tritões, pela convivência dos homens, chegassem a emitir vozes humanas, e, além disso, tivessem trato com os habitantes, a mim me parece ainda mais fantástico que um tritão, bárbaro e selvagem, tenha saltado no lago Triton, na Africa e pondo-se a brincar com os gregos, pedisse a Jasão a mesinha de três pés que este levava a Delfos para evitar, por seu intermédio, os perigos das sirtes.

Vou, porém, aduzir a este propósito um testemunho mais convincente. Nos nossos dias, um homem andava à pesca, com linha e anzol, entre os rochedos do Promontório Bárbaro [nota SPS: Cabo Espichel], perto da capela de Nossa Senhora; inesperadamente saltou para um rochedo um tritão macho, com a barba comprida, longos cabelos, peito crespo, rosto não muito disforme, e aspecto perfeitamente humano. E tendo ele estado um pouco a aquecer-se ao sol e a observar o homem que também atentamente o examinava, de repente, tomado de medo, dando um grito, com voz quase semelhante à voz humana, precipitou-se rápido no mar. É isto o que o pescador conta ainda agora, com muita ordem e belas palavras, a todos os que o querem ouvir.

"Não muito longe desta aldeia, debaixo dum rochedo sobranceiro ao mar, há uma gruta, batida pelo Oceano. As ondas penetram lá dentro, e, entrechocando-se, produzem enorme ruído. O nosso povo julga que ali foi visto outrora um tritão a cantar com a sua concha."
Mas há mais. Fernão Álvares, escrivão da Casa da índia, homem de toda a confiança, tinha na praia do Promontório da Lua uma propriedadezinha, e era seu vizinho um camponês, sério e digno de crédito. Ora o escrivão contou-me que, há poucos anos, não longe do mesmo Promontório, o tal vizinho ia, muitas vezes, a uns rochedos da praia para pescar. Um dia (como o Fernão ouviu directamente da boca dele), estando a pesca a correr bem, começou a atirar os peixes, que apanhava, para trás, para uma cavidade enxuta da rocha. Ali ficariam mais seguros!

Assim ia ele fazendo, quando deu por um garoto, ainda moço, que por ali andava nu. Não fez caso; porque, como os habitantes dos arredores costumavam ir nadar para aqueles sítios, julgou que se tratava de algum deles. Entretido na pesca, nem lhe falou; mas, pondo-se a olhar mais atentamente, viu que o rapaz apanhava os peixes e, levando-os à boca, comia-os... - Não, isto já era demais ! E foi a correr contra o garoto; mas este, rindo-se às gargalhadas, fugiu, e, saltando para o mar, andou à tona e desapareceu.

Quase por esse mesmo tempo, em frente da capital, na outra banda do rio, não longe da fortaleza que os nossos chamam Barreiro, junto a uma quinta do fidalgo Afonso de Albuquerque, o mar atirou para a praia um homem marinho, com o mesmo aspecto, mas morto.

Ainda há mais. Nos arquivos antigos do Reino, a cuja cabeça me encontro, existe um manuscrito antiquíssimo, que é um contrato entre o rei Dom Afonso III e o mestre dos Cavaleiros de São Tiago, Paio Peres; nesse documento se determina que o tributo das sereias e dos outros animais pescados nas praias da mesma Ordem, se devia pagar, não ao mestre da Ordem, mas aos reis. Donde se colige facilmente que as sereias eram frequentes nas nossas águas, visto que acerca delas se promulgou uma lei.

Já basta; não vale a pena continuar a falar de tritões, nereidas e sereias, e reatemos o fio do discurso."


© O Caminheiro de Sintra