© Pesquisa: O Caminheiro de Sintra
Imagem: autor Flickr Muchaxo
Os caminhos que já na época transportavam os habitantes até às visões |
"Se tiverem presente o que disse anteriormente sobre o raio de luz que sai da fonte de Sintra, elevando-se verticalmente para o Sol e que de longe se vê, não ficarão surpreendidos por um frade português ter descoberto reservatórios de água a cinquenta e cem palmos de profundidade, olhando friamente o zénite, porque então se vê o vapor de água que se eleva verticalmente para o Sol do sítio onde a água se oculta. Bom era que com a mesma facilidade se pudesse explicar a causa que faz com que a gentil esposa do senhor Pedagache, comerciante francês, pode ver nitidamente o que se passa no interior do corpo humano e nas entranhas da terra.
Em breve terei ocasião de me referir a este fenómeno sem pretender contudo pedir ao leitor a complacência de acreditar no que digo embora me fundamente em testemunhos seguros.
Vou pôr ponto neste assunto com as reflexões que fez o cavalheiro estrangeiro sobre a causa da estrutura singular dessa parte da serra de Sintra onde se encontram as ruínas da antiga cidade e a famosa fonte. Julga ele que esse amontoado prodigioso de grandes pedras, com dez a doze pés de largura e maior diâmetro, sobrepostas mas soltas, não estão assim desde a criação do mundo, mas que assim ficaram por alguma violenta convulsão da terra que as fez subir, ou melhor vomitar do seio da terra, bem como a espantosa fonte que se encontra no alto da montanha, longe da vista.
A permanência em Sintra pareceu-me tão agradável na primeira vez que lá estive que pedi ao secretário de Estado para me alugar ali temporáriamente, uma quinta, com o fim de examinar detidamente os sítios ermos das vizinhanças. Não foi difícil realizar este projecto e, para me pôr a par de muitas coisas, sem trair nenhum propósito particular, encontrei maneira de travar amizade com a bela Pedagache, pois vim ao conhecimento de que ela tinha estado naquele sítio com o estrangeiro a que me venho referindo. Colhi nesse convívio bastantes informações que me facilitaram pistas e me permitiram visitar os sítios que ele tinha visitado, tomando sempre, bem entendido, a precaução de me não trair para não despertar a curiosidade tanto dos portugueses como dos franceses. Sabia que o cavalheiro estrangeiro havia cumulado de bens alguns franceses muito pobres e que estes o haviam atraiçoado e prejudicado ao mesmo tempo que recebiam da sua generosidade o pão e o remédio aos seus males. Antes de partir deixou-os recomendados ao secretário de Estado, o qual, instruido do indigno procedimento desta gente, não quis beneficiar tais ingratos.
Uma senhora contou-me um caso dos mais surpreendentes que conheço, tão incrível pareça a quem o oiça contar. Havia sonhado durante a noite, como frequentemente lhe acontecia, que via próximo de Sintra uma fonte, a qual, ao acordar, descrevia de uma maneira particular a seu marido, que, por sua vez, se descaiu em falar em tal ao estrangeiro. Este empregou os maiores esforços para o levar a consentir que sua mulher se lhes fosse reunir em Sintra. Enquanto esperavam, percorreram a cavalo ou em liteira todos os arredores para descobrir o sítio que a dama, depois de acordada, minuciosamente descrevera. Nisto gastaram dois dias. Ao ser informada do insucesso, a senhora mostrou-se ofendida, dizendo não estar acostumada a sonhar fantasias e quis ela ir fazer a descoberta. Percorreram todos os lugares por onde podia passar a liteira, mas debalde.
Dispunham-se a regressar, aí pelas sete horas da tarde, deu um grito, dizendo: é este o vale e o local que eu vi em sonhos. Desceu e correu direita a uma fonte coberta a que chamam Fonte Real. Num papel escrito pela sua mão que me foi mostrado em casa da Pedagache, o estrangeiro faz a sua narrativa: “Sem querer acreditar no sonho da beldade, constituiu para mim uma enorme surpresa encontrar essa fonte exactamente conforme a descrição que o marido me tinha feito, segundo o que a mulher lhe dissera. Custou-me a acreditar que ela não tivesse já estado naquele sítio, mas para desfazer a minha dúvida jurou-me que nunca por ali havia passado. Afirmou-me também que por baixo das pedras de cantaria deviam existir dois grandes potes de ferro cheios de ouro, o que seria revelado pelos movimentos de uma vara que empunhasse. De um castanheiro bravo cortei uma vara, a qual logo que a dama lhe pegou começou a dar voltas muito rápidas. Abrimos então a ponta da vara e entalámos nela uma moeda de prata. Os movimentos da vara amorteceram. Substituimos na ranhura a moeda de prata por meia moeda de ouro e a vara girou com tal aceleração que a meia moeda se soltou e foi bater na abóboda da fonte. Surpreendido por tudo o que acabara de ver, não pude evitar de ter com aquela mulher, com pesar meu, a complacência de voltar durante a noite ao mesmo sítio acompanhado pelo marido e pela minha gente, no propósito de levantar uma das pedras que lajeavam a fonte.
Não o conseguimos. Tinhamos, porém, levantado um pouco uma das pedras e o marido, que trabalhava com entusiasmo, metendo uma mão pela abertura julgou ter tocado um dos potes de ferro que buscávamos. Eu próprio meti a minha mão e pareceu-me que o homem se não enganava. Retirámo-nos no firme propósito de regressar no dia seguinte. Nesse dia, antes de lá voltarmos, mandei como batedor um criado francês que havia tomado ao meu serviço por recomendação do senhor de Meyry, oficial francês.
Esse tunante atraiçoou-nos, do que me convenci quando farto de esperar pelo seu regresso me dirigi sozinho à fonte e ali encontrei marcada a pedra que começáramos a remover. Compreendi então que o nosso trabalho havia suscitado suspeitas à autoridade local. Não me descuidei em escrever imediatamente ao secretário de Estado a dar-lhe conta do que havia ocorrido e ele respondeu-me que esperasse, pois Sua Majestade tencionava ir a Sintra, onde eu o encontraria e nessa ocasião se procederia à abertura da fonte. Entretanto deveria transferir-me para Mafra, onde encontraria as suas ordens."
Em breve terei ocasião de me referir a este fenómeno sem pretender contudo pedir ao leitor a complacência de acreditar no que digo embora me fundamente em testemunhos seguros.
Vou pôr ponto neste assunto com as reflexões que fez o cavalheiro estrangeiro sobre a causa da estrutura singular dessa parte da serra de Sintra onde se encontram as ruínas da antiga cidade e a famosa fonte. Julga ele que esse amontoado prodigioso de grandes pedras, com dez a doze pés de largura e maior diâmetro, sobrepostas mas soltas, não estão assim desde a criação do mundo, mas que assim ficaram por alguma violenta convulsão da terra que as fez subir, ou melhor vomitar do seio da terra, bem como a espantosa fonte que se encontra no alto da montanha, longe da vista.
A permanência em Sintra pareceu-me tão agradável na primeira vez que lá estive que pedi ao secretário de Estado para me alugar ali temporáriamente, uma quinta, com o fim de examinar detidamente os sítios ermos das vizinhanças. Não foi difícil realizar este projecto e, para me pôr a par de muitas coisas, sem trair nenhum propósito particular, encontrei maneira de travar amizade com a bela Pedagache, pois vim ao conhecimento de que ela tinha estado naquele sítio com o estrangeiro a que me venho referindo. Colhi nesse convívio bastantes informações que me facilitaram pistas e me permitiram visitar os sítios que ele tinha visitado, tomando sempre, bem entendido, a precaução de me não trair para não despertar a curiosidade tanto dos portugueses como dos franceses. Sabia que o cavalheiro estrangeiro havia cumulado de bens alguns franceses muito pobres e que estes o haviam atraiçoado e prejudicado ao mesmo tempo que recebiam da sua generosidade o pão e o remédio aos seus males. Antes de partir deixou-os recomendados ao secretário de Estado, o qual, instruido do indigno procedimento desta gente, não quis beneficiar tais ingratos.
Uma senhora contou-me um caso dos mais surpreendentes que conheço, tão incrível pareça a quem o oiça contar. Havia sonhado durante a noite, como frequentemente lhe acontecia, que via próximo de Sintra uma fonte, a qual, ao acordar, descrevia de uma maneira particular a seu marido, que, por sua vez, se descaiu em falar em tal ao estrangeiro. Este empregou os maiores esforços para o levar a consentir que sua mulher se lhes fosse reunir em Sintra. Enquanto esperavam, percorreram a cavalo ou em liteira todos os arredores para descobrir o sítio que a dama, depois de acordada, minuciosamente descrevera. Nisto gastaram dois dias. Ao ser informada do insucesso, a senhora mostrou-se ofendida, dizendo não estar acostumada a sonhar fantasias e quis ela ir fazer a descoberta. Percorreram todos os lugares por onde podia passar a liteira, mas debalde.
Dispunham-se a regressar, aí pelas sete horas da tarde, deu um grito, dizendo: é este o vale e o local que eu vi em sonhos. Desceu e correu direita a uma fonte coberta a que chamam Fonte Real. Num papel escrito pela sua mão que me foi mostrado em casa da Pedagache, o estrangeiro faz a sua narrativa: “Sem querer acreditar no sonho da beldade, constituiu para mim uma enorme surpresa encontrar essa fonte exactamente conforme a descrição que o marido me tinha feito, segundo o que a mulher lhe dissera. Custou-me a acreditar que ela não tivesse já estado naquele sítio, mas para desfazer a minha dúvida jurou-me que nunca por ali havia passado. Afirmou-me também que por baixo das pedras de cantaria deviam existir dois grandes potes de ferro cheios de ouro, o que seria revelado pelos movimentos de uma vara que empunhasse. De um castanheiro bravo cortei uma vara, a qual logo que a dama lhe pegou começou a dar voltas muito rápidas. Abrimos então a ponta da vara e entalámos nela uma moeda de prata. Os movimentos da vara amorteceram. Substituimos na ranhura a moeda de prata por meia moeda de ouro e a vara girou com tal aceleração que a meia moeda se soltou e foi bater na abóboda da fonte. Surpreendido por tudo o que acabara de ver, não pude evitar de ter com aquela mulher, com pesar meu, a complacência de voltar durante a noite ao mesmo sítio acompanhado pelo marido e pela minha gente, no propósito de levantar uma das pedras que lajeavam a fonte.
Não o conseguimos. Tinhamos, porém, levantado um pouco uma das pedras e o marido, que trabalhava com entusiasmo, metendo uma mão pela abertura julgou ter tocado um dos potes de ferro que buscávamos. Eu próprio meti a minha mão e pareceu-me que o homem se não enganava. Retirámo-nos no firme propósito de regressar no dia seguinte. Nesse dia, antes de lá voltarmos, mandei como batedor um criado francês que havia tomado ao meu serviço por recomendação do senhor de Meyry, oficial francês.
Esse tunante atraiçoou-nos, do que me convenci quando farto de esperar pelo seu regresso me dirigi sozinho à fonte e ali encontrei marcada a pedra que começáramos a remover. Compreendi então que o nosso trabalho havia suscitado suspeitas à autoridade local. Não me descuidei em escrever imediatamente ao secretário de Estado a dar-lhe conta do que havia ocorrido e ele respondeu-me que esperasse, pois Sua Majestade tencionava ir a Sintra, onde eu o encontraria e nessa ocasião se procederia à abertura da fonte. Entretanto deveria transferir-me para Mafra, onde encontraria as suas ordens."
© O Caminheiro de Sintra
As outras partes de Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, relato do século XVIII:
I. Castelo de Sintra, Subterrâneos de Sintra, Descrição Física, e a Chegada - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte I
II. Subterrâneos de Sintra e os Seus Tesouros - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte II
III. Cisterna do Castelo dos Mouros e Sua Descoberta, ou a Segunda Parte dos Tesouros de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte III
IV. O Magnetismo de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte IV
VI. A Senhora Pedagache - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VI
VII. O Curandeiro de Sintra - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VII
VIII. O Convento dos Capuchos, e os seus Capuchinhos - As Memórias de Charles Fréderic Merveilleux - Parte VIII
Créditos da Fotografia: Autor Flickr Muchaxo