colecções disponíveis:
1. Lendas de Sintra 2. Sintra Magia e Misticismo 3. História de Sintra 4. O Mistério da Boca do Inferno 5. Escritores e Sintra
6. Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, Séc. XVIII 7. Contos de Sintra 8. Maçonaria em Sintra 9. Palácio da Pena 10. Subterrâneos de Sintra 11. Sintra, Imagem em Movimento


domingo, 31 de outubro de 2010

Templários e Latim - "apud" e Sintra - Segunda Adenda da Errata à Tradução da Doação de D. Afonso Henriques a Gualdim Pais



© Pesquisa e texto: O Caminheiro de Sintra
Imagem: Arquivo do Caminheiro de Sintra




  Como segunda adenda desta errata da tradução da carta de doação de D. Afonso Henriques a Gualdim Pais alusiva a Sintra, e já depois de na primeira se ter abordado o termo “Grão-Mestre” no que toca à denominação do responsável máximo pelos Templários em Portugal do século XII ao século XIV - e também o facto de a tradução por mim realizada dentro do Secreto Palácio de Sintra não ter afinal sido a primeira - esta segunda parte foca-se na tradução do termo apud, do latim para o português, na supracitada tradução.

  Depois dessa ter sido realizada e revista, existia algo no documento que não se estava a coadunar com outros escritos que à luz da vela que se encontram em desenvolvimento no Secreto Palácio de Sintra, e que têm que ver com a presença Templária em Sintra.

  Ora esses opus em tudo apontavam para que os Templários tivessem tido uma forte presença em Sintra, ou pelo menos nos limites daquilo que à altura era definido como Sintra.

  O próprio Foral de Sintra diz que: “In primis damus vobis XXX casales cum suis hereditatibus in ulixbona XXX populat oribus qui in presenti illud castellum populatis…” [Francisco Costa: “Em primeiro lugar, damo-vos trinta casais com suas fazendas em Lisboa, a vós trinta povoadores que ao presente povoais aquele castelo…”]. A pergunta que com naturalidade surge, é porque sendo os beneficiados de Sintra recebiam casais em Lisboa.

  A utilização do termo “in” é ablativa, e com clareza quer dizer “em”, o que vem dar um reforço à ideia de que os benefícios de que poderiam usufruir, teriam que ser mesmo em Lisboa, ou tanto quanto a lógica nos poderá levar de seguida, não poderiam ser em Sintra. Porquê esta divisão tão acentuada?

  Na época da presença romana, e de acordo com a cultura e organização romana, as terras tinham os seus limites muito bem definidos, formando assim fora das grandes cidades, municípios, com todas as regulamentações, direitos e deveres, que lhes eram adstritos. Depois da queda do Império Romano, e com o desfalecimento de toda a sociedade romana, os povos que vieram ocupar esta zona da Península, apesar de se terem introduzido e estabelecido com as suas culturas próprias, não foram capazes de desenvolver moldes de sociedade diferentes daqueles que ainda subsistiam como traços do Império Romano.


  Aqui torna-se necessário compreender que por a denominação de um sistema ou o seu poder colapsar, não quer dizer que todo o património Humano simplesmente desapareça da face da terra; logo a sucessão de povos num curto espaço de cerca de dois séculos no nosso território fez com que não se apagassem os principais vestígios dos romanos, que ainda eram extremamente funcionais - como um à parte: tal facto é extremamente notório na ininterrupção do uso oral do latim: os Visigodos, que foi o povo que por mais tempo aqui permaneceu nas irrequietas movimentações de povos que aconteceram entre o século IV e o século VIII, não foram capazes de deixar a sua língua marcada de forma consistente, que não em traços arquitectónicos e arqueológicos da sua cultura visíveis nos dias de hoje no legado que pela Ibéria deixaram.

  Os Visigodos trouxeram consigo o conceito de nobreza, que a pouco e pouco foi suplantando ou adequando os costumes que os romanos tinham deixado. O Clero já estava instituído no estado romano aquando do seu fim, mas devido aos pobres conhecimentos e desconhecimento do latim (que como é óbvio continuou a ser utilizado pelo povo) por parte dos Visigodos, o Clero ganhou um manancial de poder enorme - principalmente no estabelecimento de leis - e introduz-se assim de maneira subtil no seio da nobreza, aproveitando desse modo a ponte que representava entre os novos senhores e o povo que do passado tinha continuado - visto a necessidade da baixa hierarquia e serventilismo.

  Com a invasão dos Mouros na Península no século VIII, tudo acabou por mudar junto do povo. A sua entrada na Ibéria foi relativamente facilitada visto que na época dos Visigodos só os nobres podiam ser militares. Por outro lado, os Mouros permitiam que os Cristãos mantivessem o seu culto em troca de pagamentos, caso contrário convertiriam-se ao Islão. Estes dois pontos fizeram com que o povo - que tinha sofrido várias invasões - tivesse as “condições ideais” para não resistir, devido à constante falta de identificação com os senhores.

  Um ponto importantíssimo que os Mouros trouxeram, foi aquele que se relacionava com a subsistência ou auto-suficiência, através da cultura de agricultura, por meio de novas plantas, e pela sua capacidade de num curto espaço de terra, optimizarem o uso da água. Este ponto acabou por tornar qualquer cidadão capaz de se tornar auto-suficiente, através da sua pequena horta, terminando assim um regime de escravidão e dependência, criando um novo tipo de liberdade - com todas as condições e limitações que teriam por estarem agora rodeados por uma cultura completamente diferente.

  De que forma é que isto se relaciona com a utilização do “in” na atribuição de casas em Lisboa, a moradores do Castelo de Sintra?

  Com a Reconquista, o povo voltava a um regime senhorial através dos reinos do norte da Ibéria, porém, com o crescer da rebeldia de D. Afonso Henriques - que se armou a si próprio na Catedral de Zamora, desse modo não reconhecendo qualquer senhor acima de si - e com a sua habilidade para questões políticas - do grego “politiké”, significando a arte de governar a cidade - começou a dar voz aos portugueses, de quem já se intitulava Rei. A forma dos portugueses se organizarem com o poder dado pelo Rei foi através dos concelhos, que provavelmente já viriam numa forma mais rústica, da época moura, em que após ter desaparecido a autoridade dos senhores Visigodos, e com a nova forma de auto-suficiência que possuíam, continuavam a ter os habituais problemas comuns a uma comunidade organizada ou não.

  Para tal, criavam pequenas assembleias ou concelhos para resolução do pudesse afectar a comunidade, que tinham o nome de “Conventu Publico Vicinorum” ou “Assembleia Pública dos Vizinhos”, o que dará para facilmente percepcionar, a forma quão informal deve ter surgido, e desprovida de outros que não aqueles a quem os problemas que necessitassem de resolução afectavam - isto é, alguém que fosse, do regime senhorial.

  E foi precisamente isto, o enfoque na dinâmica dos concelhos, que permitiu que o Rei D. Afonso Henriques, ganhasse o poder também junto do povo. Assim sendo, D. Afonso Henriques teria todo o interesse em manter, e em desenvolver os melhores meios, para que esses concelhos, para que o povo através desses concelhos, se mantivesse satisfeito com o sentimento de justiça daquele de descendência divina.

  No caso do Foral de Sintra, D. Afonso Henriques dá trinta casais em Lisboa a habitantes do Castelo de Sintra, independentemente de serem “da classe superior ou da inferior e de qualquer ordem que sejais, e a vossos filhos e descendentes, carta irrevogável de direito”, para que precisamente esses, pudessem prosperar fora de Sintra, acabando assim por também fazer prosperar Sintra, com as devidas taxações em função do reino - o que trouxe alguns problemas depois no século seguinte, com algumas isenções que tinham sido estabelecidas mas que afinal nunca tinham sido cumpridas.

  E enfim, apud?

  Achei por bem fazer esta dissertação, para que se compreenda o ambiente em que se inseriu a carta de doação de D. Afonso Henriques a D. Gualdim Pais, e o que a interpretação errada de certos termos pode originar - embora só de seguida o irá compreender.

”…tibi tradidimus apud sintriam…” foi, apesar dos cuidados com o facto de ser um documento em latim medieval, traduzido como “as quais te entregamos, ao pé de Sintra”. Realmente, a palavra apud, traduz-se hoje em dia como “perto de”, “junto a”, à excepção de quando é utilizada em citações literárias, possuindo a mesma função que “in” como por exemplo “in Jornal de...”.

  O que aconteceu depois foi que o sentido que isso dava à tradução, era contrário relativamente a opus que dentro do Secreto Palácio de Sintra se vêm desenvolvendo, relacionados com esta carta de doação.

  Depois de uma dedicada pesquisa, surgiram factos que vinham comprovar que apud provavelmente quereria dizer outra coisa, que não “junto a”, “perto de”. E como exemplo:

1. Livro: ”De re aedificatoria” ["Da Arte de Construir"] - Leon Battista Alberti, século XV
”Apud Romam ad basilicam Petri Maximam…”
[CdS: “Em Roma, na Basílica de São Pedro…]

2. Carta que D. Gilberto faz à Ordem do Templo, renunciando as igrejas no termo da Cera:
”Ego Guilibertus, Ulixbonensis Ep's... Frater Gualdinus Magister Portugal, apud Ulixbonam Kartam recepit.”]
[CdS: “Eu Gilberto, Episcopal dos Lisboetas… Frei Gualdino Mestre de Portugal, em Lisboa recebo a carta.”]

3. Livro: “Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Christo” - Frei Bernardo da Costa, século XVIII
”…quinque solidos per singulos annos apud Ecclesiam Sanctae Mariae de Santarem…” [Concordata entre o Bispo de Lisboa D. Gilberto, e a Ordem do Templo]
”…cada hum anno sinco soldos na Igreja de Santa Maria de Santarem…” [tradução de Frei Bernardo da Costa]

[nota: neste terceiro ponto, convem referir que o próprio Frei Bernardo da Costa evoca assim de forma involuntária o seu uso inapropriado na sua tradução - que foi a primeira da carta de doação - e em que utiliza para apud, “junto de”. A título de exemplo e a par do acima dado, contam também:


-- Documento 16 da “Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Christo”
"M. G. Portugaleñs. tc temporis apud Colimbriam Recepit Kartam"
"O Mestre do Templo Gualdim em Portugal recebeo a Carta em Coimbra" [tradução de Frei Bernardo da Costa]


-- Documento 22 da “Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Christo”
"Facta Carta Apud Alafoes."
"Foy feita em Alafoes." [tradução de Frei Bernardo da Costa]


-- Documento 31 da “Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Christo”
"Facta fuit haec Carta apud Covelianam."
"Foi esta Carta feita em Covilham" [tradução de Frei Bernardo da Costa]


-- Documento 33 da “Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Christo”
"fuit haec Carta apud Colimbriam"
"Foi esta Carta feita em Coimbra" [tradução de Frei Bernardo da Costa]


Para além dos exemplos, ainda se poderá demonstrar o reconhecimento por parte de entre outros autores tardios:


-- “Publicada [a doação] com muitas incorrecções por Fr. Bernardo da Costa na Historia da Ordem Militar de Christo, documento 15, datado da Era de 1199.” [“As chancelarias medievais portuguesas da senhora Abiah E. Reuter”]


-- “…se regulando-me pelos originaes de Thomar, eu aclare [nos trabalhos de Brandão e Frei António Brandão e Frei Bernardo da Costa] algumas cousas duvidosas, explique as confusas, reproduza as omitidas, e verifique as datas…” [“Elucidario das Palavras, Termos e Frases que em Portugal antigamente se usaram”; Joaquim de Santa Rosa de Viterbo]


Com estes exemplos do trabalho de Frei Bernardo da Costa, se poderá verificar que (muito) provavelmente terá sido um erro de tradução.]

  E por fim, no dicionário de latim-francês, de F. Gaffiot, da editora Hachette, podemos encontrar no termo “apud”, entre as já conhecidas designações, ainda esta:

”apud Dyrrachium Caes. C. 3, 57, 1;
apud Numantiam Cic. de Or. 2, 267;
apud Salamina Nep. Them. 3, 4.
[arch., rare en latin class.] [ = in et abl.]”


[CdS: “em Durrës, Caio Júlio César, Quæ Extant, 3, 57, 1;
em Numância, Cícero, De Oratori II, 267;
em Salamina, Cornelius Nepos, Temístocles, 3, 4.
[arcaico, raro no latim clássico] [igual a in, e também ablativo]”]

  Assim, e para completar este longo post que se espera que possa ser mais do que uma simples adenda e importante errata, há que dizer que na tradução da doação de D. Afonso Henriques a D. Gualdim Pais, se deverá ler “esta carta de doação irrevogável de casas e herdades cultivadas e por cultivar, as quais te entregamos, em Sintra por nosso prazer e pelo fiel serviço que sempre nos prestastes.”


© O Caminheiro de Sintra





Link para a primeira adenda da errata
Link para a tradução da doação de D. Afonso Henriques a Gualdim Pais