colecções disponíveis:
1. Lendas de Sintra 2. Sintra Magia e Misticismo 3. História de Sintra 4. O Mistério da Boca do Inferno 5. Escritores e Sintra
6. Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, Séc. XVIII 7. Contos de Sintra 8. Maçonaria em Sintra 9. Palácio da Pena 10. Subterrâneos de Sintra 11. Sintra, Imagem em Movimento


quarta-feira, 14 de abril de 2010

Aleister Crowley e Fernando Pessoa ou "O Mistério da Boca do Inferno" - Parte I



© Pesquisa e texto: O Caminheiro de Sintra
Imagens: Arquivo do Caminheiro de Sintra



“Fernando Pessoa e Sintra”, “O Mistério da Boca do Inferno”, ou “Fernando Pessoa e Aleister Crowley”, são as possíveis designações de um mito envolvendo as referidas figuras, a Serra de Sintra, e suas cercanias.

Nascido em Leamington no dia 12 de Outubro de 1875, de seu verdadeiro nome Edward Alexander Crowley, o mesmo de seu pai, Edward Crowley - que fez fortuna como cervejeiro e, reformando-se dedicou-se ao estudo da Teosofia - viveram durante a primeira guerra mundial nos Estados Unidos, local onde veio a escrever o Hino a Pã (nota: no fim deste post encontra-se o poema na versão portuguesa e na versão inglesa, incluindo um vídeo onde o "Hymn to Pan" é recitado) que Fernando Pessoa traduziu para a Língua Portuguesa. Assumindo então o nome de Aleister Crowler, tornou-se num afamado mago no início do século passado, tendo a sua fama sido mais conhecida pela infâmia com que os jornais de todo o mundo o descreviam, em muito devido à excentricidade de sua vida, e ao radicalismo da sua comunicação, ou as palavras e sentidos que essa sempre tomava.

Mago e ocultista, auto-intitulava-se de “Mago Therion” e também negramente de “Besta 666”. Aleister formou a Astrum Argentum (assinada "A.:.A.:.") que era uma ordem mística que publicava material visto pelos críticos da altura como perverso e satânico. Posteriormente formou também uma ordem pseudotemplária, a Ordo Templi Orientis (assinada "O.T.O"), que com a ajuda da imagem que a primeira a ser criada tinha, contribuiu para acentuar a errónea imagem e sentido que alguns espalhavam sobre a suposta perversa face dos Templários.

Fernando Pessoa, o poeta do livro “Mensagem”, enigmático poema sobre a Portugalidade ou o papel e desígnios de Portugal - também ele atraído pelo oculto ao longo da sua vida - estudou inúmeras vertentes esotéricas as quais ia aprofundando ou abandonando conforme essas se iam tornando falaciosas (como principal exemplo temos o da Madame Blavatsky) ou se transformando em sentimentos críveis dentro daquele. E assim se passou com o estudo da influência dos astros: partir de determinada altura de sua vida, dedicou-se ao estudo da Astrologia, e anos mais tarde decidiu aprodundá-la ainda mais.

E foi precisamente a Astrologia, que acabou por fazer com que os dois se encontrassem.


Após uma circular anunciando “As Confissões de Aleister Crowley” (nota: livro do link em inglês) em seis volumes, ter ido parar às mãos de Fernando Pessoa - a qual esse a achou interessantíssima - Fernando Pessoa receberia a pedido seu e dias mais tarde, o primeiro desses seis volumes.

Ora continha esse primeiro volume um horóscopo de Aleister Crowley. E após o ter estudado por curiosidade, Pessoa percebeu que o horóscopo estava errado, que muito provavelmente Aleister Crowley teria nascido antes da hora que esse apresentava.

Quando enviou o valor para pagamento dos restantes volumes, Fernando Pessoa adicionou uma nota à carta, pedindo para informarem o senhor Crowley, acerca do erro do seu horóscopo, presente no primeiro volume.

Passados uns dias - e para seu espanto - Fernando Pessoa recebeu uma carta do próprio Aleister Crowley, agradecendo-lhe a indicação do erro no dito horóscopo. E assim desse modo, iniciaram a troca de correspondência.

Tempos depois, Fernando Pessoa ao enviar uns versos seus em inglês para Aleister Crowley que o primeiro estimava, recebeu como resposta, a informação de que o mago o desejava conhecer, e assim que pudesse, Portugal solarento iria ser o próximo destino de suas viagens motivadas por questões de saúde.

Segundo João Gaspar Simões, biógrafo de Fernando Pessoa, esse viria a conhecer "um estranho homem, verdadeiro Cagliostro dos tempos modernos, em cuja complexidade e desenvoltura se acusam os traços típicos desse misto de charlatão e de inspirado que o nosso tímido mistificador debalde procurou ser".

João Gaspar Simões escreveu ainda que Fernando Pessoa ficou muito preocupado com a não esperada visita "daquele feiticeiro - cuja espantosa biografia lhe fora dado a conhecer lendo a história das suas estranhas aventuras na obra onde discernira o erro de interpretação astrológica".

Crowley chegou a Lisboa a 2 de Setembro de 1930 acompanhado pela Mulher Escarlate (Miss Hanni Larissa Jaeger, sua assistente), a bordo do “Alcântara”, depois de ter ficado retido em Vigo durante um dia, devido a um intensíssimo nevoeiro. "Em terra, Fernando Pessoa, transido e tímido, vê avançar para ele um homem alto, espadaúdo, envolto numa capa negra, cujos olhos, ao mesmo tempo maliciosos e satânicos, o fitam repreensivamente, enquanto exclama: "Então que ideia foi essa de me mandar um nevoeiro lá para cima?"" - João Gaspar Simões, in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História duma Geração.

Acabaram por ir depois para o Hotel l’Europe, e só depois para o Hotel Paris, no Estoril.

Depois da chegada, diz-se que Fernando Pessoa só esteve com eles por duas vezes, tendo uma sido no Estoril, e a outra em Lisboa.

Porém, a 18 de Setembro Fernando Pessoa recebeu uma carta de Crowley, contando-lhe que Miss Jaeger havia tido duas noites atrás, um “formidável” ataque de histerismo, deixando o Hotel Miramar de pantanas, e que logo na manhã que se seguiu, dela não havia sinal. Havia desaparecido.

Continua no papel seguinte...


© O Caminheiro de Sintra


"Lembrei-me um dia de traduzir o Hino a Pã, o que fiz, conforme o meu critério de traduzir verso, em absoluta conformidade rítmica com o original. Mandei a V. o poema para, como lhe disse, V. ver o que é propriamente um "poema mágico", em comparação com um simples "poema a respeito de magia" como é o meu "Último Sortilégio"". - Carta de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões.


Hino a Pã
Tradução de Fernando Pessoa - Revista Presença n° 33, de Julho/Outubro de 1933

Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Io Pã!
Ioô Pã! Io Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da àmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Io Pã! Io Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão -
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Io Pã!
Io Pã! Io Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Io Pã! Io Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Io Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Io Pã! Io Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Io Pã! Io Pã Pã! Pã!




Hymn to Pan
Aleister Crowley, 1929

Thrill with lissome lust of the light,
O man! My man!
Come careering out of the night
Of Pan! Io Pan .
Io Pan! Io Pan! Come over the sea
From Sicily and from Arcady!
Roaming as Bacchus, with fauns and pards
And nymphs and styrs for thy guards,
On a milk-white ass, come over the sea
To me, to me,
Coem with Apollo in bridal dress
(Spheperdess and pythoness)
Come with Artemis, silken shod,
And wash thy white thigh, beautiful God,
In the moon, of the woods, on the marble mount,
The dimpled dawn of of the amber fount!
Dip the purple of passionate prayer
In the crimson shrine, the scarlet snare,
The soul that startles in eyes of blue
To watch thy wantoness weeping through
The tangled grove, the gnarled bole
Of the living tree that is spirit and soul
And body and brain -come over the sea,
(Io Pan! Io Pan!)
Devil or god, to me, to me,
My man! my man!
Come with trumpets sounding shrill
Over the hill!
Come with drums low muttering
From the spring!
Come with flute and come with pipe!
Am I not ripe?
I, who wait and writhe and wrestle
With air that hath no boughs to nestle
My body, weary of empty clasp,
Strong as a lion, and sharp as an asp-
Come, O come!
I am numb
With the lonely lust of devildom.
Thrust the sword through the galling fetter,
All devourer, all begetter;
Give me the sign of the Open Eye
And the token erect of thorny thigh
And the word of madness and mystery,
O pan! Io Pan!
Io Pan! Io Pan! Pan Pan! Pan,
I am a man:
Do as thou wilt, as a great god can,
O Pan! Io Pan!
Io pan! Io Pan Pan! Iam awake
In the grip of the snake.
The eagle slashes with beak and claw;
The gods withdraw:
The great beasts come, Io Pan! I am borne
To death on the horn
Of the Unicorn.
I am Pan! Io Pan! Io Pan Pan! Pan!
I am thy mate, I am thy man,
Goat of thy flock, I am gold , I am god,
Flesh to thy bone, flower to thy rod.
With hoofs of steel I race on the rocks
Through solstice stubborn to equinox.
And I rave; and I rape and I rip and I rend
Everlasting, world without end.
Mannikin, maiden, maenad, man,
In the might of Pan.
Io Pan! Io Pan Pan! Pan! Io Pan!


As outras partes d'O Mistério da Boca do Inferno:

II. "O Mistério da Boca do Inferno" ou Fernando Pessoa e Aleister Crowley - Parte II
III. Fernando Pessoa e Aleister Crowley ou "O Mistério da Boca do Inferno" - Parte III
I.II. Solução d'"O Mistério da Boca do Inferno" - Parte I
II.II. "O Mistério da Boca do Inferno" ou Fernando Pessoa e Aleister Crowley - Parte II da Conclusão