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domingo, 20 de junho de 2010

Almeida Garrett e Sintra: a Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra ou Palácio da Vila


© Pesquisa e texto: O Caminheiro de Sintra
Excerto transcrito: O Romanceiro, de Almeida Garrett
Imagens: Arquivo do Caminheiro de Sintra; autor Flickr dot Whisker


Almeida Garret, um dos autores que falou
sobre a Sala das Pegas no Palácio Nacional de Sintra

Almeida Garrett, no seu primeiro volume do Romanceiro, de 1843, na última parte do mesmo, apresenta sob forma de nota o seguinte texto para o seu redactor, em alusão à Lenda do Palácio da Vila, de Sintra:


AS PEGAS DE SINTRA

Dou aqui lugar a esta composição que, moderna como é, e minha, toda é feita de coisa populares e antigas. A anedota devera ter sido celebrada pelos menestréis do tempo: não o foi, e eu procurei suprir o seu descuido. Não aparece pois em meu nome, senão no deles, embora de longe os rastreie. Quando a primeira vez saiu de minha carteira a presente balada foi para se imprimir na Ilustração31 , jornal que se publicava em Lisboa em 1845-46. Reimprimir com ela aqui também a carta que então escrevi ao redactor daquele jornal, porque deveras contém a história de sua composição. Eis aqui a carta:

O Romanceiro, de Almeida Garrett


"Queria escrever-lhe um artigo, meu caro redactor, para s sua Ilustração, que realmente faz milagres no meio desta escassez de tudo, e destes impedimentos para tudo que caracterizam a nossa boa terra. È promessa velha e que devia ter cumprido há muito. Mas como, mas quando? E que há-de um homem escrever que se leia – que se leia as damas belas e elegantes cavalheiros – quando lhe anda entalado nos bicos da pena o fatal fio da política, que a faz espirrar e esgravatear em tudo o mais? Com as leis das eleições, e as questões da fazenda, e as organizações ministeriais, e não sei que mais coisas tais, foi-se-me de todo a derradeira reminiscência literária que ainda por cá havia. Tenho saudade dela, mas foi-se, morreu pela pátria! Não sei se morreu bem ou mal, se fez bem ou mal em morrer; mas é certo que morreu. Eu porém nunca prometi, que faltasse, a homem nenhum – nem mulher, que mais é! O ponto está que me aceitem em pagamento aquilo que eu posso dar. Que, às vezes, o mau pagador não é mau senão pelas absurdas e excessivas exigências do credor. Axioma de eterna verdade, especialmente quando aplicado a tudo o que passa entre os representantes de nosso pai Adão e as representantes de nossa mãe Eva ...

Passemos adiante. Quer, senhor redactor, aceitar-me, em pagamento de letra de minha promessa, este papel que achei embrulhado entre mil rabiscos de projectos de lei, tenções de autos, notas ao orçamento e outras coisas galantes do mesmo género? Se quer, aqui o tem, e disponha dele. Deixe-me só dizer o que é, e como foi feito. Estava eu em Sintra, foi em... Que importa lá quando foi? Basta saber que não era nossa estação fasionável em que elegância de Lisboa se vai enfastiar clássicamente para o mais romântico sítio da terra. Era na Primavera; passeávamos dois sós, ou quase sós, naquele Eden delicioso. Fomos ver o palácio; chegámos à sala das pegas. Pegas são chocalheiras e linguarudas: eu detesto o bicho...e nesse tempo, estava-lhe com zanga de morte... Abominável bicho! Isto já lá vai há muito tempo, meu caro redactor, e ainda me faz ferver o sangue... Passemos adiante!

Perguntaram-me a explicação daquelas pegas da sala. Contei a história popular que é tão sabida. Acharam-lhe graça, pediram-me que a pudesse em verso: fiz isto. E isto que é? Não sei. É romance ou é apólogo? É fábula ou é cantiga? Nunca fui grande classificador dessas coisas; que fará agora? O que lhe sei dizer é que no século XVI e XVII, segundo consta do Fidalgo aprendiz do nosso Francisco Manuel de Melo, se cantava em Portugal uma cantiga que começava assim como esta:

"Gavião, Gavião branco,
Vai ferido e vai voando."

Nunca pude encontrar o resto, nem procurei muito por ele; mas engracei com este princípio, e servi-me dele aqui. Acha mal feito? Eu não. Se soubesse, meu caro senhor, todas as circunstâncias desta composição! Se soubesse de certa pega ou pegas que me perseguiram com seu maldito palrear, e me queriam, ainda em cima, assacar, a mim, gavião, elas pegas, as manhas que só elas têm! Mas ficou logrado a pega e...

Adeus, meu amigo, outra vez, adiante! O gavião, e sobretudo o gavião branco – note – é animal nobre, de espécie, género e até família diferente da pega.

Passe muito bem. Aqui estão os versos; salvar a pátria.

Julho, 22 de 1846.


Palácio Nacional de Sintra, Sala das Pegas
autor Flickr: dot Whisker

AS PEGAS DE SINTRA

Gavião, gavião branco
Vai ferido e vão voando;
Mas não diz quem n'o feriu,
Gavião, gavião branco!

O gavião é calado,
Vai ferido e vai voando
Assim fora a negra pega
Que há-de sempre andar palrando.

A pega é negra e palreira,
O que sabe vai contando...
Muito palra a pega
Que sempre há-de estar palrando.

Mas quer Deus que os chocalheiros
Guardem, ás vezes, falando,
O segredo dos sisudos,
Que eles não guardam calando.

Era uma pega no paço
Que el-rei tomara, caçando;
Trazem-na as damas mimosa
Com a estar sempre afagando.

Nos paços era de Sintra
Onde estava el-rei poisando:
A rainha e suas damas
No jardim andam folgando,

Entre açucena e rosas,
Entre os goivos trebelhando;
Umas regavam as flores
Outras as vão apanhando.

E a minha pega com eles
Sempre, sempre, palreando.
Vinha el-rei atrás de todos
Com Dona Mécia falando.

Era a mais formosa dama
Que andava naquele bando;
No ombro de Dona Mécia,
A pega vinha poisando.

E zelosa aprecia
Que os andava espreitando...
Colhera el-rei uma rosa,
A dona Mécia a ia dando,

Com um requebro nos olhos
Tão namorando e tão brando...
Inda bem, minha rainha,
Que adiante te vais andando!

Pegou na rosa a donzela,
Disfarçada a está cheirando...
Senão quando a negra pega
Que lha tira e vai voando.

Deu um grito Dona Mécia...
E a rainha, voltando,
Deu com olhos em ambos...
Ambos se estão delatando.

-"Foi por bem!" – lhe disse o rei,
Seu acordo recobrando:
-"Foi por bem!" – "Por bem!" Repete
A pega em torno voando.

- "Por bem, por bem!" grasna a tonta,
De má malícia cuidando
Co’a chocalheira da língua
Andar a caso enredando.

Mas quer Deus que os chocalheiros
Guardem às vezes falando
O segredo dos sisudos
Que eles não guardam calando.

Riu-se a rainha da pega
E ficou acreditando
Que a inocência do caso
Nela se estava provando.

Da pega mexeriqueira,
Do bem que fez, mal pensando,
Nos reais paços de Sintra
A memória está durando.

E eis aqui, senhora, a história
Da pega que aí vês palrando,
Da rosa que tem no bico,
Da letra que a está cercando.

A pega é negra palreira,
O que sabe vai contando:
Mas quer Deus que os chocalheiros
Guardem segredo falando.

O gavião, esse é outro;
Vai ferido e vai voando:
Mas não diz quem no feriu...
Gavião, gavião branco!"

© O Caminheiro de Sintra