Gravura da Serração da Velha, publicada a meio do século XIX |
Vinha pensando nos últimos tempos nesta tradição, e a minha palestra no Porto no Domingo passado acabou por despoletar este pequeno artigo. Esta seria a noite da Serração da Velha do presente ano.
No Norte acabei por - de tanto que vinha nesta a pensar - comentar o Serrar da Velha, e, tendo-o feito acabei por receber pequenos fragmentos de quem ainda a ele assistiu. Era a década de 1950, o local era Paços de Ferreira, e a casa na qual a testemunha se encontrava ficava no fundo do vale. A senhora com quem falei - à época, menina - tremia de medo na noite do ritual: era um chinfrim que ecoava no passar da turba que corria o topo dos montes em redor do vale, diabolicamente coordenado pelos sons que prolongados e prolongando-se nos ecos que deslizavam nas colinas, eram expelidos pelas bocas dos chifres.
"Saração da Velha" |
Isso, no Norte.
Cheguei a casa neste dia de roncos de serrar, e fui ter com aquilo que me lembrava da "Sarraçam da Velha". Já são longas as décadas em que o serrar da velha recebeu o foco de luz dos investigadores - tão bem nos reavivou Carlos Cardoso também no Jornal de Sintra, os 3 "serrares" que se seguem.
E do que do serrar da velha em Sintra se encontrou como registo, é muito pouco. É muito pouco, mas representa três marcos (1899, 1900,1940) que mostram novamente Sintra como local de culto e veneração à vida, à natureza, à Serra e aos anos em que tudo isso vamos percebendo, vai amadurecendo dentro de nós.
Pela morte, fim, do século XIX, a Serração da Velha em Sintra estava também ela de vida decaída: «...mais uma costumeira antiga, que também já lá vai...» Mas o que é engraçado é que em 1940, aparentemente terá existido uma tentativa de reanimação. Recordo-me de uma vez ter lido um testemunho de um habitante de São Pedro de Penaferrim (Sintra), que recordava nos seus tempos de juventude - não muito distantes de 1940 - terem feito em cartão, uma imitação de eléctrico da Praia das Maçãs... E foram até à Vila de Sintra, para picarem os habitantes da Vila. Segundo me recordo, foram corridos à pedrada.
Mas contei este episódio precisamente para mostrar o pitoresco da força de São Pedro de Sintra, que tantas vezes reanima - e revitaliza - velhas tradições. E para o que esta noite de roncos interessa, tem que ver com esse ano de 1940: o programa do «Papos-Secos» (grupo recreativo) anunciava que na Quarta-feira seguinte iriam transportar a velha do alto de São Pedro para a sede do «Papos-Secos». Seria lido o testamento da Velha, da Velha de nome Quaresma. O testamento abrangia muitas pessoas de São Pedro e de Sintra, e o auto... O auto já se sabe que fim daria à Velha!
A Serração da Velha em Lisboa, com as tochas, a fanfarra, os homens das escadas e a guarda de Lisboa a afastar o povo |
Na maior parte destes rituais no país, a velha ou era efígie, ou uma pessoa vestida como ela, como a esquálida velha. No primeiro caso, era no fim serrada; no segundo caso, era à última da hora substituída por um cortiço. E nas muitas das vezes, no fim ateava-se-lhe fogo, distribuindo depois paulada pela assistência. Sim, "paulada" no sentido de "mocada", "cacetada".
Outras, a paulada ficava guardada para a assistência a dar no serrador.
E é engraçado como o ritual, sem o próprio anunciar os seus símbolos, tão evidentes os torna: sendo realizado quase a meio do período da Quaresma, quando o tempo de abstenção se tornava incomodativo - e numa mera privação para os menos dedicados no sentir da religião -, tentavam provocar a morte da Quaresma, num cortejo que poderia - e era, mor-parte das vezes - ser uma chinfrineira infernal. E, do tanto que a "velha" lhes havia tirado, muito havia para dar através do seu testamento. Só que no fim, depois do mal feito, recebia todo aquele que complacente e cúmplice havia sido por ter à Serração da Velha assistido, a merecida paulada.
A meio do século XVIII: Nova Relaçam dos Successos Acontecidos na Serraçaõ da Velha deste prezente anno, fugida e tornada da mesma. |
Claro que me lembrei de uma das coisas que era feita em algumas localidades em Portugal; lembrei-me e pensei em guardá-la apenas para mim, já sendo um fardo sabê-la. Mas acho que deve ser relembrada, tal como muitas tristes histórias que ao longo dos séculos foram pela tradição perpetuadas, por grupos mantidas, sendo que o facilitismo social faz com que as pessoas deixem de usar a sua própria cabeça, e a lassidão dos seus princípios lhes tire a coragem para terem a voz necessária: existiram casos em que um cão e um gato eram colocados dentro de uma caixa de madeira, para representar a velha, e o ruído provocado ajudar na algazarra. Certamente que ainda existe quem nisso encontre graça, tão certo como nem todos os que nos rodeiam terem desenvolvimento moral para conseguirem viver entre os seus pares.
Pelo menos nos registos que nos ficaram, a Serração da Velha em Sintra não fazia uso da dormência que tantas vezes afecta a empatia pelos outros seres.
Saindo desse espectro mais negro do ser humano e indo até ao lado bom da Serração: até Eça em «Os Maias» menciona o ritual, dizendo que os Condes de Gouvarinho começavam a receber [os convidados] depois da Cerração da Velha:
- Além disso não imaginei que V. Ex.ª começasse a receber tão cedo... V. Ex.ª antigamente era só depois da Serração da Velha. Até me lembro que o ano passado...
Mas emudeceu. O Conde de Gouvarinho voltara-se, pousando a mão carinhosa no ombro de Carlos(...)
Poderia falar das variações, dos relatos de Lisboa, dos versos e inúmeros folhetins jocosos que foram publicados, das gravuras, modificações ortográficas e semânticas, da terceira Quarta-feira da Quaresma em que normalmente - com suas excepções - era realizada, mas tudo isso poderá ficar para depois; nesta noite quero apenas lembrar este secular ritual que marca o desejo de nova vida na velha que com o fim do Inverno também se extingue.
Não resisto em deixar o pitoresco de uma composição anónima do século XVI, que tão bem se enquadra no pitoresco da Sarraçam da Velha. E nesta noite tê-la-íamos debaixo da chuva que agora cai na Serra...