Mas o amor – ou o desejo de amor, de amar e de ser amado – me ter gerado a mim e a si, é muito mais do que tudo isto. O amor é mais do que a história, é mais do que as histórias. O amor é, acima de tudo, a verdade. O amor é a verdade, e não realidades por nós aos outros impostas. O amor é o desejo de quem muito se gosta, quem muito bem se quer, se encontre com quem melhor a faça sentir. O amor é sentir e aceitar a perda: a perda de alguém, a perda da palavra, a perda do terreno, a perda da glória.
Amor é compreender que tudo se deu, e que tudo – o bem e o mal – foi dado em tudo aquilo que se pôde, em todos os momentos vividos com quem a nossa intimidade partilhámos. O amor, apesar de ter o ego como rastilho, é uma estrela que emana o calor da verdade que pode aquecer todos em nosso redor nos seus momentos de maior frio nos Invernos da vida.
anjo cupidíneo em chumbo, época Romana, Norte da Europa colecção pessoal |
Enquanto a Parentália decorria entre as famílias, no interior dos lares e em redor dos túmulos além centros cívicos celebrando os defuntos, e devido a esse peso da morte e do fim do Inverno cessando inclusivamente as uniões matrimoniais, a Lupercália decorria no exterior, com jovens e magistrados correndo nus pelas ruas batendo com tiras de couro ensanguentadas para que a fertilidade abonasse até algumas das mulheres de linhagem que se expunham, tal como nos conta Plutarco. Este antagonismo que ainda hoje encontramos em celebrações é notório em algumas oposições, como por exemplo – e apenas maioritariamente, visto que não existe uma uniformização total das datas – o Enterro do Bacalhau no Sábado de Aleluia por oposição ao jejum do dia anterior, Sexta-feira Santa. Ou na Serração da Velha, em que é anunciada uma revolta subversiva por a Quaresma com seus rigores já ir longa e a aproximar-se do fim.
Mas temos mais um exemplo que continua a relacionar-se com este mês de Fevereiro. E curiosamente uma versão desse exemplo saiu também na Crónica de Nuremberga (ano de 1493) cujo autor de certa forma se encontra relacionado com Sintra pela ligação de seus pares com Valentim de Morávia. No século III d.C e na sequência da guerra, o Imperador Claudius II (também conhecido por Claudius Gothicus) proibiu os casamentos entre os mais jovens para que esses assim pudessem dedicar o corpo e alma às batalhas do Império. Mas um sacerdote cristão continuou a celebrar os casamentos – na forma cristã – até que foi apanhado e brutalmente morto. Entre outros feitos – de forma lendária – que são contados sobre este sacerdote, os seus actos levaram a que séculos mais tarde fosse santificado. Foi assim que no ano de 469 d.C. o Papa decidiu que a celebração deste santo mártir seria a 14 de Fevereiro. O seu nome era Valentim, e sempre foi associado ao amor, aos jovens, à felicidade no casamento. Hoje em dia é quase apagado pela expressão Dia dos Namorados e o seu nome – São Valentim – é mais conhecido como um ícone de um dia do ano do que um ser humano que lá longe no tempo viveu, e que no correr desse foi sempre associado ao amor.
É no meio destes antagonismos, destas oposições e crispações que ainda temos de viver com a nossa luz sem a perder, tendo Deus, o Universo, a esperança que a consigamos fazer chegar aos outros. E se Deus, o Universo, assim o deseja, e se o amor é por todos desejado – disso tendo ou não consciência – é também por muitos, pela maior parte, desprezado. Mesmo quando todos nele falam. Algo tão simples como paixão e amor, é de difícil verbalização nas suas diferenças. A maior parte das pessoas não possui alfabeto emocional nem vocabulário sentimental para conseguirem compor essas diferenças em razões que o próprio entendimento claramente percepcione.
Combat d'Amour en Songe filme de Raoul Ruiz quase todo ele rodado na Quinta da Regaleira e cujo título expressa bem o seu conteúdo |
E por vezes surgem estas travessuras do destino em momentos de transformação nas nossas vidas, ou ao mesmo tempo que os nossos relacionamentos se transformam em novos tipos. Não posso deixar de expressar a minha mais profunda e intensa admiração por aqueles que por necessidade de afeição ao outro e para o bem de ambas as partes, decidem mutuamente que o seu relacionamento amoroso se tem de transformar num relacionamento de amizade, por mais anos que ambos tenham em intimidade passado, por mais intensos que tenham sido os momentos vividos. Aqueles que o conseguem fazer colocando à frente de tudo o bem-estar do “novo amigo” e do “velho namorado”, são pessoas que brilham devido a todo o amor que têm dentro de si e que empregam na dificilíssima transformação que é passar um relacionamento amoroso para um de amizade. Pelo pior do momento, da fase de transformação, cresce ainda mais esse amor quando a própria relação amorosa já não assim o é aos olhos da sociedade. Um paradoxo do mais complexo de nós e das nossas relações.
O que acabei de escrever demonstra que o amor e a paixão são muito mais do que o corpo amado, do que o coração ardente e sedento de estímulos para os sentidos e para o corpo. E se a aparência e o corpo do nosso objecto de amor ou paixão é importante para nós, é-o porque primeiramente reflecte no falar, no olhar, no estar, e depois no agir, no cuidar e no tocar, tudo aquilo que preenche aquele ser humano que ocupa o nosso peito e a nossa mente.
Caminho dos Amores em Sintra por Isaías Newton, ano de 1877 |
Tal como nas transformações que por vezes em nossas vidas são necessárias, a liberdade provida pela verdade também tem de o estar nos interstícios desses sentires. Forçar o amor, as vidas, as vontades e os quereres, leva à infelicidade da distância do eu para com o próprio coração.
E sim, bem sei – e sei-o bem – que existem aqueles que em silêncio, calando-o, sentem um amor em excesso que continuamente contra seu peito bate como a forte rebentação do Oceano contra as gigantes rochas das falésias da Roca. Quando se dirige esse amor – que em silêncio é sempre arduamente mantido discreto – para o alvo do nosso querer, tudo é estrondosamente belo e o que se dá é uma inundação de felicidade na vida da outra pessoa; mas quando esse amor é contido dentro do peito parece querer rebentá-lo como fortes águas para fraca represa. E é assim que discretamente se vive com esses ardentes e tempestuosos tumultos dentro de nós.
Mas esse amor, dentro do peito mantido, pode até ser exacerbado pela nossa vida. No meu caso o que me levou para a Serra de Sintra na adolescência foi precisamente a mutilação do amor, o vício do amor de sangue que para sempre se tinha perdido não se perdendo contudo a imensa chama da paixão que dentro de mim ficaria descontroladamente a arder. A Serra permitiu que para além do seu aconchego, compreendesse a dócil calma com que a paixão dá lugar ao amor.
O Mistério da Estrada de Sintra adaptado ao cinema, baseado na obra homónima de Eça de Queirós e com um complexo enredo amoroso |
Nessas histórias da história encontramos amores, desamores, encontros e desencontros, mas também os mais belos sonhos quebrados e as paixões mais ardentes, como a suposta daquele japonês no início do século XX com a mais encantadora das Vénus pecadoras que tinha encontrado nos seus caminhos pelo mundo. Já o Dia dos Namorados, este dia de amor, permitiu que também eu lhe desse um pouco desse através da realidade de fantasia que aqui nesta Serra sempre se viveu, que aqui nesta Serra ainda se vive.