colecções disponíveis:
1. Lendas de Sintra 2. Sintra Magia e Misticismo 3. História de Sintra 4. O Mistério da Boca do Inferno 5. Escritores e Sintra
6. Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, Séc. XVIII 7. Contos de Sintra 8. Maçonaria em Sintra 9. Palácio da Pena 10. Subterrâneos de Sintra 11. Sintra, Imagem em Movimento


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Amor.



     Mas o amor – ou o desejo de amor, de amar e de ser amado – me ter gerado a mim e a si, é muito mais do que tudo isto. O amor é mais do que a história, é mais do que as histórias. O amor é, acima de tudo, a verdade. O amor é a verdade, e não realidades por nós aos outros impostas. O amor é o desejo de quem muito se gosta, quem muito bem se quer, se encontre com quem melhor a faça sentir. O amor é sentir e aceitar a perda: a perda de alguém, a perda da palavra, a perda do terreno, a perda da glória.

     Amor é compreender que tudo se deu, e que tudo – o bem e o mal – foi dado em tudo aquilo que se pôde, em todos os momentos vividos com quem a nossa intimidade partilhámos. O amor, apesar de ter o ego como rastilho, é uma estrela que emana o calor da verdade que pode aquecer todos em nosso redor nos seus momentos de maior frio nos Invernos da vida.

anjo cupidíneo em chumbo,
época Romana, Norte da Europa
colecção pessoal
     E não é o mundo de hoje apenas que vive com as contradições e antagonismos que como lâminas de afiados gumes ferem fundo os corações. Rómulo e Remo – descendentes de Eneias, herói de Tróia e pai de uma nova Tróia (Roma) – foram amamentados, cuidados pela loba Lupa na Lupercal, caverna do Monte Palatino (de onde temos hoje a palavra palácio). Nessa caverna iniciavam-se as celebrações da Lupercália que incidia não só sobre a celebração da vida com o aproximar da Primavera, mas também da fertilidade das mulheres e dos campos. Ao mesmo tempo que se celebrava a Lupercália (incidindo nesses dias também sobre a Juno e a fertilidade da mulher, e o Fauno e a fertilidade dos campos) celebrava-se também a Parentália. Se os sacerdotes se encontravam na caverna Lupercal a 15 de Fevereiro, a Parentália iniciava-se a 13 de Fevereiro e ia até aos vintes; o contraste das duas celebrações não as crispa, mas mostra a crispação que temos entre todos nós na nossa natureza mais animal.

     Enquanto a Parentália decorria entre as famílias, no interior dos lares e em redor dos túmulos além centros cívicos celebrando os defuntos, e devido a esse peso da morte e do fim do Inverno cessando inclusivamente as uniões matrimoniais, a Lupercália decorria no exterior, com jovens e magistrados correndo nus pelas ruas batendo com tiras de couro ensanguentadas para que a fertilidade abonasse até algumas das mulheres de linhagem que se expunham, tal como nos conta Plutarco. Este antagonismo que ainda hoje encontramos em celebrações é notório em algumas oposições, como por exemplo – e apenas maioritariamente, visto que não existe uma uniformização total das datas – o Enterro do Bacalhau no Sábado de Aleluia por oposição ao jejum do dia anterior, Sexta-feira Santa. Ou na Serração da Velha, em que é anunciada uma revolta subversiva por a Quaresma com seus rigores já ir longa e a aproximar-se do fim.



Inácio de Andrade escreve à sua esposa em 1815: Assomava ao longe a escarpada serra de Cintra, cantada pelo insigne Camões, onde se acham variados primores da natureza enriquecida pela arte. Valles cultivados, e cortados de regatos, fontes, cascatas, e palacios magnificos. Imagina a sensação dolorosa, que soffri com a triste lembrança do mar dilatado, que tenho de sulcar, antes de tornar a beber comtigo a purissima agua da fonte dos amores.


     Mas temos mais um exemplo que continua a relacionar-se com este mês de Fevereiro. E curiosamente uma versão desse exemplo saiu também na Crónica de Nuremberga (ano de 1493) cujo autor de certa forma se encontra relacionado com Sintra pela ligação de seus pares com Valentim de Morávia. No século III d.C e na sequência da guerra, o Imperador Claudius II (também conhecido por Claudius Gothicus) proibiu os casamentos entre os mais jovens para que esses assim pudessem dedicar o corpo e alma às batalhas do Império. Mas um sacerdote cristão continuou a celebrar os casamentos – na forma cristã – até que foi apanhado e brutalmente morto. Entre outros feitos – de forma lendária – que são contados sobre este sacerdote, os seus actos levaram a que séculos mais tarde fosse santificado. Foi assim que no ano de 469 d.C. o Papa decidiu que a celebração deste santo mártir seria a 14 de Fevereiro. O seu nome era Valentim, e sempre foi associado ao amor, aos jovens, à felicidade no casamento. Hoje em dia é quase apagado pela expressão Dia dos Namorados e o seu nome – São Valentim – é mais conhecido como um ícone de um dia do ano do que um ser humano que lá longe no tempo viveu, e que no correr desse foi sempre associado ao amor.

     É no meio destes antagonismos, destas oposições e crispações que ainda temos de viver com a nossa luz sem a perder, tendo Deus, o Universo, a esperança que a consigamos fazer chegar aos outros. E se Deus, o Universo, assim o deseja, e se o amor é por todos desejado – disso tendo ou não consciência – é também por muitos, pela maior parte, desprezado. Mesmo quando todos nele falam. Algo tão simples como paixão e amor, é de difícil verbalização nas suas diferenças. A maior parte das pessoas não possui alfabeto emocional nem vocabulário sentimental para conseguirem compor essas diferenças em razões que o próprio entendimento claramente percepcione.

Combat d'Amour en Songe
filme de Raoul Ruiz quase todo ele
rodado na Quinta da Regaleira
e cujo título expressa bem o seu conteúdo
     Depois, e ainda em relação ao desprezo que o amor recebe quando o interesse pessoal ultrapassa limites, encontramos de tudo: a pressa, a obsessão, a materialização em objecto para ser usado, a “amizade” (que – ironicamente falando – é tanto amizade como o interesse único na consumação do interesse pessoal), a sede e fome dos estímulos e dos sentidos, e por aí fora, tendo como fim unicamente o prazer unilateral. É nestas travessias da vida que em anos são cruzadas que encontramos algumas destas travessuras. Umas promovidas pelas próprias pessoas com o auxílio das coincidências do destino, outras apenas como más interpretações dos nossos actos e gestos mais humildes. Mas todos estes obstáculos – mesmo aqueles mais fisicamente ardentes – têm o amor, quer por sua ausência quer por sua necessidade, como fundo.

     E por vezes surgem estas travessuras do destino em momentos de transformação nas nossas vidas, ou ao mesmo tempo que os nossos relacionamentos se transformam em novos tipos. Não posso deixar de expressar a minha mais profunda e intensa admiração por aqueles que por necessidade de afeição ao outro e para o bem de ambas as partes, decidem mutuamente que o seu relacionamento amoroso se tem de transformar num relacionamento de amizade, por mais anos que ambos tenham em intimidade passado, por mais intensos que tenham sido os momentos vividos. Aqueles que o conseguem fazer colocando à frente de tudo o bem-estar do “novo amigo” e do “velho namorado”, são pessoas que brilham devido a todo o amor que têm dentro de si e que empregam na dificilíssima transformação que é passar um relacionamento amoroso para um de amizade. Pelo pior do momento, da fase de transformação, cresce ainda mais esse amor quando a própria relação amorosa já não assim o é aos olhos da sociedade. Um paradoxo do mais complexo de nós e das nossas relações.

     O que acabei de escrever demonstra que o amor e a paixão são muito mais do que o corpo amado, do que o coração ardente e sedento de estímulos para os sentidos e para o corpo. E se a aparência e o corpo do nosso objecto de amor ou paixão é importante para nós, é-o porque primeiramente reflecte no falar, no olhar, no estar, e depois no agir, no cuidar e no tocar, tudo aquilo que preenche aquele ser humano que ocupa o nosso peito e a nossa mente.

Caminho dos Amores em Sintra
por Isaías Newton, ano de 1877
     Amar é muito mais do que sentir. E só amando se consegue ter a verdadeira liberdade dos dois corpos. Não só pela liberdade do toque – no sentido mais amplo do que a expressão escrita possa parecer – mas também pela liberdade do sentir. E tal como a verdade desse toque, só se consegue a combustão de dois corações quando os sabores, os olhares, o quente e o frio, o húmido e o seco, os sentires do toque, conseguem estar em consonância a sentir tudo isso numa verdade pelos dois permitida viver em amor, mas escalada pela paixão.

     Tal como nas transformações que por vezes em nossas vidas são necessárias, a liberdade provida pela verdade também tem de o estar nos interstícios desses sentires. Forçar o amor, as vidas, as vontades e os quereres, leva à infelicidade da distância do eu para com o próprio coração.

     E sim, bem sei – e sei-o bem – que existem aqueles que em silêncio, calando-o, sentem um amor em excesso que continuamente contra seu peito bate como a forte rebentação do Oceano contra as gigantes rochas das falésias da Roca. Quando se dirige esse amor – que em silêncio é sempre arduamente mantido discreto – para o alvo do nosso querer, tudo é estrondosamente belo e o que se dá é uma inundação de felicidade na vida da outra pessoa; mas quando esse amor é contido dentro do peito parece querer rebentá-lo como fortes águas para fraca represa. E é assim que discretamente se vive com esses ardentes e tempestuosos tumultos dentro de nós.

    Mas esse amor, dentro do peito mantido, pode até ser exacerbado pela nossa vida. No meu caso o que me levou para a Serra de Sintra na adolescência foi precisamente a mutilação do amor, o vício do amor de sangue que para sempre se tinha perdido não se perdendo contudo a imensa chama da paixão que dentro de mim ficaria descontroladamente a arder. A Serra permitiu que para além do seu aconchego, compreendesse a dócil calma com que a paixão dá lugar ao amor.

O Mistério da Estrada de Sintra
adaptado ao cinema, baseado na obra homónima de
Eça de Queirós e com um complexo enredo amoroso
    É muito bom poder também olhar para trás na história da Vila e Serra e ver os infindáveis casos de amor, desde os mais intensamente suaves do século XVI até aos mais acintosos e intriguistas do século XIX. Se pensarmos que existiram mundos com concepções próprias de amor dentro de cada coração dessas histórias, percebemos que estamos perante não só a história, mas perante uma riqueza interminável de amor, dor, paixão e fantasia, mas aquela fantasia que nos traz a esperança, tão importante para nosso peito respirar – no sentido que vai além daquele que sustenta com oxigénio o nosso corpo.

     Nessas histórias da história encontramos amores, desamores, encontros e desencontros, mas também os mais belos sonhos quebrados e as paixões mais ardentes, como a suposta daquele japonês no início do século XX com a mais encantadora das Vénus pecadoras que tinha encontrado nos seus caminhos pelo mundo. Já o Dia dos Namorados, este dia de amor, permitiu que também eu lhe desse um pouco desse através da realidade de fantasia que aqui nesta Serra sempre se viveu, que aqui nesta Serra ainda se vive.