colecções disponíveis:
1. Lendas de Sintra 2. Sintra Magia e Misticismo 3. História de Sintra 4. O Mistério da Boca do Inferno 5. Escritores e Sintra
6. Sintra nas Memórias de Charles Merveilleux, Séc. XVIII 7. Contos de Sintra 8. Maçonaria em Sintra 9. Palácio da Pena 10. Subterrâneos de Sintra 11. Sintra, Imagem em Movimento


domingo, 23 de maio de 2010

Depois da Conquista de Sintra: Lenda do Sinal do Céu


© Pesquisa e texto: O Caminheiro de Sintra
Transcrição: Lendas de Portugal, de Gentil Marques
Imagem: autor Flickr pedro prats


- Sim! - confirmou alegremente o rei - Depois
de Lisboa renderam-se os castelos de
Almada, Sintra...
  Não directamente relacionada com Sintra, mas incorporando-se no rol de conquistas de D. Afonso Henriques, e tendo Sintra como prelúdio, esta lenda fala da conquista do Castelo de Alenquer, e em que as figuras principais da Lenda do Sinal do Céu são D. Afonso Henriques e Gualdim Pais, seu importante cavaleiro que partiu depois para a Palestina, onde durante cinco anos militou como Cavaleiro da Ordem do Templo, tendo inclusive participado no cerco da cidade de Gaza. Quando regressou, foi Grão-Mestre dos Templários em Portugal, dando um importantíssimo contributo à propagação da Ordem dos Templários no nosso país.

"Como se estivesse pairando entre o céu e a terra, no silêncio da cela semi-obscurecida, D. Gualdim orava, profundamente entregue às suas devoções. O corpo lasso - cansado de lutas a que se havia exposto durante a famosa e difícil conquista de Lisboa - sentia um prazer físico e espiritual nessa semi-obscuridade, nessa semi-acção, nesse quase absoluto silêncio. De joelhos em terra, o rosto escondido nas mãos, o corpo inclinado para a frente, dir-se-ia a verdadeira estátua de oração. Mas porque a sua sensibilidade era profundamente apurada, o seu espírito começou a subitamente a turbar-se em ondas de alerta, como se movimenta a água parada de um lago ao ser-lhe lançada uma pequenina pedra. 

D. Gualdim estremeceu. Teve a sensação de que não estava só. E, retirando do rosto as mãos, ergueu o busto e voltou-se num vagar mal contido. Os seus olhos habituados à meia-luz ambiente descortinaram logo a figura magra e alta do superior do convento, e o seu olhar indagou de tão honrosa presença. O superior, numa voz baixa e pausada, que se esforçava por ser humilde, elucidou:

- Perdoai-me, irmão. Não desejaria interromper a vossa oração piedosa... mas tenho algo de importante a comunicar-vos.
- Falai sem receio. Estava apenas dando graças a Deus pela dita deste silêncio, depois do tremendo inferno que foi a conquista de Lisboa.
- Bem mereceis este repouso, irmão. Por isso mesmo me aflige interromper-vos.
- É esta a missão de cavaleiros e monges.
- Sim, é essa a nossa missão.. Já o disse D. Sancho de Castela: "o som da trombeta transforma-nos em leões e o do sino em cordeiros..." Que se cumpra, pois, em nós, a vontade de Deus!

D. Gualdim sorriu com o respeito devido ao seu superior.
- Mas decerto não viestes aqui para nos enaltecerdes...
Foi a vez do monge sorrir também.
- Oh, não! A minha presença nesta cela deve-se a um desejo do nosso rei D. Afonso Henriques.
Os olhos do cavaleiro-monge brilharam mais intensamente. O seu busto endireitou-se com estranha altivez.
- El-rei vai sair de novo a campo?
Com um sinal de cabeça o monge confirmou:
- Sim.. .O sangue ferve-lhe nas veias.. .o fervor à causa cristã é indomável!
D. Gualdim já não parecia o mesmo homem humilde e abatido de há pouco.
- Quando precisa el-rei de mim?
- Amanhã, ao romper do dia.
- Que Deus seja louvado! Lá estarei com os meus homens.
Sorriu o monge superior do convento.
- El-rei aprecia-vos muito. Contou-me a vossa proeza, quando subistes as escarpas do monte cujo terreno parecia desfazer-se debaixo dos pés...Falou-me dos pedregulhos que iam caindo por todos os lados e só por, milagre vos não acertaram...E disse-me como fostes forte sempre avançando de armas nos dentes, para que as mãos ficassem mais livres e vos ajudassem a subir...
 D. Gualdim começou a impacientar-se.
- Por Deus!.. .Nada fiz que os outros não fizessem também.
- Mas fostes o primeiro a chegar à muralha...
- Foi el-rei que vos contou tudo isso?
- Foi ele, em parte, e os outros ajudaram-no.
- Os outros?
Sorriu e respirou fundo D. Gualdim. Depois, como se falasse consigo próprio, o cavaleiro-monge declarou numa voz serena e firme:
- Com um rei como o nosso, que sempre está onde a luta se trava mais renhida, não podem haver descuidados ou cobardes.. .Eu fiz apenas o que me cumpria fazer.
- Por isso el-rei vos reclama de novo em campo...
- E lá estarei, se Deus quiser, para maior honra e glória de Deus!
- Ámen...
E silenciosamente, como chegara, o superior saiu da cela de D. Gualdim.
Só, este ficou um momento imóvel, olhando para um ponto vago no espaço. Depois os seus joelhos voltaram a roçar a terra, o seu busto esguio tornou a encurvar-se e as suas mãos mais uma vez cobriram o seu rosto, de olhar brilhante e feições vincadas. Em volta, o silêncio continuou silêncio e a penumbra, penumbra. Só o seu pensamento, feito senhor absoluto do ambiente, cresceu como único vencedor...
No horizonte, uma nesga de luz impôs a sua presença às trevas da noite. Madrugada fresca de São João. Em massa assim indefinida, caminhava o exército lusitano. D. Afonso Henriques voltou a ouvir-se. Queria falar a um dos seus cavaleiros. Foram buscá-lo sem demora.
Subiu sonora a voz do rei, como sempre que dava uma ordem.
- Aproximai-vos, D.Gualdim!
Submisso mas isento de humildade humilhante, o cavaleiro-monge curvou a cabeça.
- Dizei, Senhor.
Voltou o rei a falar com altivez:
- Vou deixar aqui o exército às ordens de D. Ordonho. Preciso, primeiramente, de fazer um reconhecimento.
Admirou-se o cavaleiro.
- Vós? Seria perigoso! Ficai, eu me sentirei honrado com a vossa mercê, se puder fazer esse reconhecimento em vosso lugar!
Franziu o rei as sobrancelhas espessas.
- Disse-vos que desejo fazer um reconhecimento. E não lego em ninguém esse meu desejo!
Arriscou ainda o cavaleiro-monge:
- Mas... ides sair do campo?
- Sim. Sairei disfarçado e acompanhado apenas por vós, D. Gualdim...
Curvou o monge a cabeça, para logo olhar de frente o seu rei.
- É grande a honra que me concedeis, Senhor! Tão grande como a responsabilidade, que me cabe, de vos trazer, de novo são e salvo.
Sorriu ligeiramente o rei.
- Nada temais! Quero apenas chegar junto do castelo dos mouros antes que o sol rompa. Preciso de descer para Alcácer, e não quero deixar mal defendidas as nossas costas, com focos que poderão perder-nos. Este castelo terá de ser nosso. Mas preciso de saber a hora de o tomar.
- O castelo será vosso, como o têm sido os outros que tendes desejado.
- Sim! - confirmou alegremente o rei - Depois de Lisboa renderam-se os castelos de Almada, Sintra, Palmela. Este fica perto de Lisboa, e também terá de ser nosso, repito!
- Eu repito também, se o permitis: sê-lo-á em breve!
A expressão dura de D. Afonso Henriques adoçou-se. Mas a sua voz soou áspera em breve, como sempre.
- Aprontai-vos e segui-me.. .Tenho pressa!

A nesga de luz que impunha a sua presença às trevas da noite alargou-se mais. E o recorte do exército português tornou-se mais nítido na cinza rosada da manhã. A areia ensaibrada rangeu sob o metal do calçado do rei português. Do lato de todo o seu corpo imponente, D. Afonso Henriques olhava o castelo, sobranceiro e sereno. Tudo parecia calmo à volta. A própria pureza do ar, correndo como brisa, parecia um convite para tornar cristão mais aquele bocado de terra. O rei cofiou lentamente as suas barbas, enquanto lentamente, contra o seu costume, dizia ao companheiro:
- Parece um castelo de mouros encantados! Não se vê ninguém...
- Custa a crer que nem tenham vigias!
- Quem sabe?
- Cuidado, Senhor! Descobri além um vulto a mover-se...
O rei de Portugal franziu as sobrancelhas, numa concentração, enquanto dizia como se falasse consigo próprio:
- Vim aqui para saber se a hora era propícia à conquista deste castelo. Mandai-me um sinal do Céu, ó Deus Todo-Poderoso! Mandai-me um sinal!
D. Gualdim guardara silêncio. Mas vendo que o vulto corria agora direito a eles, preveniu:
- Descobriram-nos! Vão dar o alarme!
O rei semicerrou os olhos, numa tentativa de ver melhor na meia-luz da madrugada nascente.
- Reparai bem, D. Gualdim! O vulto que corre para nós é de um cão enorme!
O cavaleiro-monge concentrou todos os seus sentidos nesse vulto que corria direito a eles e se distinguia perfeitamente.
- Assim é, meu Senhor! Mas nunca vi um alão tão forte e tão grande! Teremos de o matar antes que dê o alarme...
Já o cão se dirigia na direcção do rei de Portugal. D. Gualdim gritou, quase ao mesmo tempo que puxava a espada:
- Cuidado Senhor!
Mas D. Afonso Henriques suspendeu-lhe o gesto. O alão mal chegara junto do rei conquistador começara a lamber-lhe as mãos, dando saltos de imensa e estranha alegria. D. Afonso Henriques sorriu.
- Reparai, D Gualdim: o alão rende-me vassalagem! Recebe-me como a um libertador, ou como se me conhecesse há muito...deve ser este o sinal do Céu! O avanço das nossas tropas far-se-á imediatamente e o castelo será nosso. O alão o quer!
Como num eco, D. Gualdim repetiu:
- O alão quer!
  E desta frase lendária, que ficou para todos os tempos, resultou mais uma conquista de mais uma praça e o nome da terra que hoje se chama Alenquer. O sinal do Céu chegara o rei de Portugal obedecera! E quando o Sol, em toda a sua pujança, longa das lamúrias da noite, dardejava os seus raios quentes sobre a terra morena, já o estandarte do rei de Portugal flutuava no alto do que fora um castelo dos mouros!..."


© O Caminheiro de Sintra


No mapa, a seta verde aponta para o Castelo de Alenquer:


Ver mapa maior