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sábado, 3 de junho de 2017

Dom João Manuel e as Carapuças com Cornos de Cabra


Um Sátiro (ou Fauno)
na publicação de Hieronymus Osius, Fabulae Aesopi
(das fábulas de Esopo, também tratado no meu último
artigo do Jornal de Sintra), ano de 1564

    Quem foi D. João Manuel? Quantos D. Joões Manuel não existiram?
    Este era especial, e, aliás, até mesmo o uso deste Dom era especial.
    Não no sentido que intuitivamente lhe reconhece, não advindo de um título da alta nobreza (Duque, Marquês, Conde, Visconde, Barão, Senhor), nem advindo de mercê própria (Dom poderia assim ser concedido: à parte de título nobiliárquico); o que o tornava especial além do seu enquadramento familiar, é que foi na sua sucessão, no herdar deste Dom específico, que se geraram as tragédias em que o Alcaide-mor de Sintra ficou no Norte de África com uma flecha atravessada no rosto e lutando como bravo leão, ou que a aparição do coroado, depois da passagem por essa batalha, passou a ser avistado em vários pontos, avistando-se mais concretamente a esperança de por entre nevoeiro reaparecer, trazendo um novo mundo ao interior ou ao espírito de Portugal. Mas para tal, quanto a mim, é necessário que cada um de nós saia primeiramente da névoa em que esse se encontra, mostrando um novo mundo a si próprio.

    Mas voltando a D. João Manuel: o seu pai, figura muito conhecida na história de Portugal, teve até enquanto muito jovem, a oferta de um escravo que havia nascido no Congo. Acabou muitos anos mais tarde por tornar esse escravo num cavaleiro da Ordem de Santiago – muito também devido a feitos praticados por esse mesmo escravo na conquista de um território, a par do irmão do Rei, a par do Imperador Carlos V, e a par de D. João de Castro.

    Esse pai de D. João Manuel que inclusive tornou em cavaleiro um escravo que tinha recebido quando jovem, era precisamente o Rei D. João III. D. João Manuel, além de ser filho de um rei português do século XVI, era Príncipe Real. E um príncipe, deveria ter sempre a sua sagração enquanto cavaleiro, em grandes festas – ou aquilo que assim fosse encarado – ou desafios onde pudesse mostrar a sua destreza, onde pudesse demonstrar os seus aprestos na cavalaria, em toda a nobreza e manejos que a essa estivesse ligada, como nos ficou escrito, na nossa história, por exemplo através do Rei D. João I.

    As festas e desafios escolhidos, decididos para o Príncipe D. João Manuel foram-nos contados nas palavras de Jorge Ferreyra de Vasconcellos, que poucos anos antes – pouquíssimos! –  era apenas um moço de câmara do Infante D. Duarte (irmão do Rei D. João III). Para essas festas e desafios foi escolhido um conhecido lugar de Lisboa que naqueles anos tinha um Palácio Real e tomava o nome de Enxobregas. Se associou Xabregas a Enxobregas, fê-lo da forna correcta, exceptuando talvez ou muito provavelmente, a imagem que em sua mente apareceu da “modernidade” de Xabregas. Nesses anos de 1540 era a zona tomada literalmente como um lugar paradisíaco, onde os bergantins atracavam em águas claras vendo a poucos metros de si o Palácio Real, e por detrás desse, erguendo-se colinas repletas de doces bosques guardando fantasias da Antiguidade Clássica.

    Mas o lugar não foi escolhido pelos homens que percorrem o chão de terra à qual se agarra a maior razão e lucidez. O lugar foi escolhido por um conjunto de selvagens com cabelo pelos joelhos, com cornos de cabra saindo de suas carapuças, que foram a um outro Paço Real numa montanha de um promontório da Luna – representação à qual inevitavelmente associamos Sintra, o Paço Real de Sintra, ainda para mais pela forma como está transcrito no livro Sintra Lendária -, e em que entrando na sua principal sala, orlos fazendo soar, anunciaram o desafio à família real.
    O dia do desafio viu-se chegado, as estruturas para as justas foram montadas, e os cavaleiros, todo o tipo de cavaleiros e suas armaduras os revestindo, foram chegando. Uns traziam sua honra para celebrar o investir do Príncipe enquanto cavaleiro, outros traziam presentes para fazer honra ao dia.


Dom João Manuel

    O contar da celebração do armar cavaleiro o Príncipe D. João Manuel, revela-nos que os maiores presentes tinham sido trazidos da Serra de Sintra. Tinham sido capturados direi antes, na Serra de Sintra, por dois bravos cavaleiros portugueses que cruzando-a se cruzaram com dois gigantes que de lá queriam partir para o Mediterrânio. Ali esses viram seu destino riscado para serem ao Príncipe de Portugal ofertados. A obra, romanceando – se assim se poderá tal termo utilizar dada a profusão e transição de estilos que marca na época –, conta-nos também que os dois gigantes foram da Serra de Sintra trazidos numa águia sobre um batel, mas quando essa se aproximava de Enxobregas, uma de suas asas tocou o Tejo, fazendo com que ela se virasse, atirando os dois gigantes e os dois cavaleiros para o fundo do Tejo. Das águas do rio emergiu apenas um dos cavaleiros, enquanto o outro se perdeu.
    Este recontar transmite-nos muito provavelmente que um desses dois cavaleiros faleceu no afundar de uma embarcação que se dirigia para as festas de investidura do Príncipe Real de Portugal como cavaleiro. Apesar disso, as celebrações continuaram.


 
uma composição de Francesco Corteccia, do século XVI, onde os coros de orlos - como os tocados pelos sátiros - se encontram presentes 

    Assim, no século XVI nos foi contado que foi armado cavaleiro o Príncipe de Portugal D. João Manuel, que nunca chegou a ser Rei de Portugal e que faleceu poucos dias antes de seu único filho e herdeiro nascer, o que motivou – enquanto o herdeiro não nasceu – grande preocupação, até porque sua mãe o carregava dentro de si com todos os riscos à situação inerentes.. O filho do Príncipe D. João Manuel nasceu sem conhecer seu pai, e rebelde, é ainda hoje conhecido como “o Desejado”. O pai de D. Sebastião e Príncipe Real, D. João Manuel, viveu apenas 17 curtos anos, não sendo os suficientes para conhecer o Rei que através da sua história de vida marcou nossa cultura.

    Passam hoje, 3 de Junho, 480 anos desde que nasceu para curta vida viver. Uma curta vida que nos legou também, dois gigantes caçados na Serra de Sintra e selvagens sátiros anunciando justas em Xabregas, numa embaixada silvestre que teria, eventualmente, entrado pelo Paço Real de Sintra, orlos tocando.

    Muito havia por dissecar nestes doces e romanceados contornos, mas hoje é dia de celebrar os 17 anos da vida vivida que o Príncipe D. João Manuel na nossa história tomou.