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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O 14 de Fevereiro e os Amores do Rapaz da Praça dos Canos (Séculos XIV/XV)

    Como surgiu o Rapaz da Praça dos Canos? De infidelidade, de amor, ou de desejo carnal?

    Chegado o 14 de Fevereiro, sinto-me – pelo simbolismo que tem – impelido a fazer uma evocação sobre o amor, particularmente sobre partes da nossa história que podem aos meus contemporâneos fazer pensar sobre o amor, em vez de continuarem a interpretá-lo de forma rotineira ou a deixarem-se ir em cegas paixões a que erradamente chamam amor.

O "Rapaz da Praça dos Canos"
    Quando se fala de bastardos, de filhos não legitimados, percebemos sempre que algo saiu da normal rotina do casamento. Mas na realidade nunca questionamos se algum desses casos pode ter um legítimo amor, ou uma legítima paixão.

    Para tal, tanto pode esse amor ser despertado naturalmente, como a paixão pode ter começado a arder de uma pequena centelha surgida no normal correr de um dia. Mas o amor ou a paixão podem para isso ter condições. Isto é, o próprio relacionamento já existente entre duas pessoas pode ter propiciado o despertar de um novo amor ou de uma nova paixão: por dolo do trato na já existente união entre as duas pessoas, por ausência de interesse intelectual e/ou físico, ou simplesmente por uma das pessoas se ter tornado completamente diferente daquilo que aparentou ser quando para si puxou a outra. Estes são alguns dos casos que propiciam o surgir de novos amores, mais até do que novas paixões.

    Até que ponto é erro ou pecado, fazer-se alguém infeliz? Ou até, até que ponto é erro ou pecado, deixar-se ser infeliz? Até que ponto é erro ou pecado, deixar os sonhos escaparem com o sopro de Deus (ou do Universo) que é insuflado quando nos sentimos verdadeiramente felizes por amar de forma pura e por sermos puramente amados?

    O pai do Rapaz da Praça dos Canos casou-se no século XIV, nos anos de 1300. Na verdade, não era feliz. Tinha sido obrigado a casar. Quem o fazia feliz era alguém que tinha estado sempre em companhia da sua esposa. Este verdadeiro amor houve (...) e como se dela enamorou, sendo casado e ainda infante, de maneira que para dela no começo não perdesse de vista nem de fala estando ausente, como ouvistes, que é a principal razão de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar mensagens... Aqui adaptei alguns termos para que possa compreender o sentido que a frase tem nos dias de hoje. E de certeza que percebeu.

Túmulo do Rei D. Pedro I: à esquerda vê-se Inês de Castro
sendo degolada; à direita vê-se a cabeça de Inês de Castro já no chão

    O sonho de se amar, sobreveio quando a sua esposa faleceu. Sobreveio quando aquela com quem o pai do Rapaz da Praça dos Canos tinha sido obrigado a casar, faleceu. Poderiam agora viver juntos sem impedimentos de maior, aquele homem que tinha casado infeliz e a rapariga que dele recebera mensagens quando ausente.

    Mas esta história tem um triste fim. Essa rapariga viria a ser degolada, cortar-lhe-iam a cabeça. O pai do Rapaz da Praça dos Canos nunca a esqueceu. No seu próprio túmulo mandou que fossem colocadas, esculpidas, cenas da vida dos dois. Mandou que fosse esculpido o dia do Juízo Final, em que bons e maus  eram devidamente separados, uns encaminhando-se para o Paraíso, outros caindo na bocarra voraz do Inferno. No topo de tudo, numa janela e separados apenas por uma coluna de pedra, Pedro, de mãos juntas, jura eterno amor a Inês.

    Esta é uma das mais belas histórias da nossa história.

    O Rei D. Pedro I nem depois que reinou lhe aprouve receber mulher. Existiu no entanto um único caso conhecido, em que se tendo envolvido com uma mulher, essa concebeu um filho seu. A esse filho foi dado o nome de João, sendo entregue ao cuidado de um cidadão de Lisboa que vivia junto à Catedral, na Praça dos Canos.

    Mas já lá iremos ao Rapaz da Praça dos Canos.

    D. Pedro certamente ficou com um sentido de justiça ainda mais apurado. Na história que se cruza com a história de Sintra vemos isso através dos dois escudeiros que roubaram um judeu que andava pelos montes a vender especiarias. Foram mandados degolar pelo Rei no Paço de Belas. Depois de apanhados, perante si, o Rei tentava extrair a verdade da boca de ambos, caminhando de um lado para o outro, vindo-lhe por vezes as lágrimas aos olhos por terem sido com ele criados e pelo fim que a injustiça que haviam cometido merecia – e que se concretizou. 

Túmulo do Rei D. Pedro I: o Dia do Juízo Final.
Subindo para o lado esquerdo, as almas que se encaminham para o Céu;
caindo à direita na boca do Inferno, as almas perdidas;
no canto superior direito, numa janela de uma torre, Pedro e Inês.

    Passadas décadas, o Rapaz da Praça dos Canos é obrigado a entrar numa guerra, deixada acontecer – se assim se lhe pode indirectamente atribuir – por um meio-irmão seu. Mas por um meio-irmão que era filho legítimo, e não um bastardo como ele era. Este bastardo, o Rapaz da Praça dos Canos, foi no entanto aquele que o povo escolheu para que o reino se salvasse.

    Ao longo de uma aventura medieval – que para quem a leia, nada mais é que o recontar da nossa história – o Rapaz da Praça dos Canos trava inúmeros combates, toma as mais difíceis decisões, fala com eremitas emparedados, e acaba por se tornar em D. João I, Rei de Portugal.

    D. João I casou com Philippa of Lancaster, que após casamento na Catedral do Porto em 2 de Fevereiro de 1387, se tornou naquela que conhecemos como Rainha D. Filipa de Lencastre. O selar do casamento deu-se a 2 de Fevereiro, mas as festas realizaram-se apenas dias depois, no dia de São Valentim, dia 14 de Fevereiro.

    D. João e D. Filipa, para além da Ínclita Geração fariam brotar muito do que em Sintra se vê. Fariam brotar em eremitas da Serra de Sintra, das mais belas edificações que aqui existiram. Fariam brotar também, o amor que os filhos lhe tinham, bem notório nas palavras que o Rei D. Duarte escreveu sobre o amor que os filhos sentiam por D. João I.

    Assim também se passou com o amor de D. Duarte por sua mãe, por D. Filipa de Lencastre, o qual fez com que, à beira da morte dessa, o próprio D. Duarte saísse de um estado depressivo em que se encontrava já há tempos, e estado o qual fazia com que lhe aconselhassem que frequentasse mulheres e bebesse vinho para espairecer. Creio que as recomendações não especializadas não mudaram muito em seiscentos anos.

Túmulo do Rei D. Pedro I: a própria representação do Rei já amortalhado.
A inscrição que se encontra por baixo foi por alguns definida - de forma
romântica ou poética, entenda-se - como contendo
até ao fim do mundoOutras hipóteses são aqui está o fim do mundo e ainda aqui espero o fim do mundo.

    Até aqui temos tido um amor que, para quem não lide com o passado no dia-a-dia, parece algo imaculado. O que é certo é que, realmente, muito amor brotou em coisas que eram importantíssimas, e que permitiam ter a intensidade que a nossa história do século XIV para o século XV tem, como esta envolvendo o Rapaz da Praça dos Canos, o qual se haveria de tornar no Rei D. João I e o levaria a casar com aquela que na história fica com a imagem de uma delicada e elegante de sentimentos, nobre inglesa.

    Seriam os casamentos dos reis sempre assim? Não. Os casamentos, o matrimónio, foram sempre contratualizados (salvo algumas excepções surgidas de ímpetos, como o caso do Rei D. Fernando I). O coração do rei (não querendo dizer que todos o tivessem com bom fundo, tal como qualquer ser humano que estas palavras leia) era sacrificado em prol do que se entendia como o que deveria ser feito para o Reino prosperar. Tal como em qualquer família o coração dos filhos é sacrificado segundo o entendimento dos progenitores para aquilo que melhor é para a vida profissional, amorosa e de amizade, tendo em vista a vida dos filhos e o estender da longevidade da família.

    Relativamente à evocação do amor deste 14 de Fevereiro – e no seguimento daquilo que tenho aqui hoje contado – existe muitas vezes um apequenar da figura do homem quando, tendo um casamento contraído, acabava por gerar o que eram conhecidos como bastardos, o que, por sua vez, eram vistos apenas como um produto do satisfazer do desejo intenso da líbido. Mas seria realmente sempre assim? Não o sabemos. O que se sabe, como o disse, é que isso é visto quase sempre, quase sem excepção, como esse desejo de carne húmida e quente, que tão intenso desequilíbrio de emoções gera no ávido consumir de dois corpos que se desejam.

    Na música, na pintura, na literatura, nas mais belas criações, encontramos por vezes, nas obras excepcionais, um arder dos sentidos que consumimos intensamente com o nosso coração e com os nossos sentidos. É sabido também, em termos teológicos, que o Diabo, o mal, entra pelos sentidos. E não basta terem-se princípios, pois um princípio pode ser bom para quem o tem, mas no seu aplicar ser mau para aqueles que essa pessoa rodeiam, ou que até, muitos afecta de malévola, egoísta, maneira.
Túmulo do Rei D. Pedro I, fragmento de imagem do tema Dia do
Juízo Final, já acima apresentada. Aqui - já em detalhe - vê-se, a uma
janela, Pedro jurando amor eterno a Inês.


    Mas existe algo grandioso que vai muito além dos sentidos: a nossa concepção de amor. A nossa concepção de amar. De ver sorrir e de fazer sorrir, tendo em vista apenas o pequeno e simples prazer de dar e receber. Esse prazer que é projectado na fantasia da mente como eterno, dura por vezes poucas semanas, meses, ou anos, mas foi em momentos tido como sempiterno.

    Outras vezes dura o resto da vida. Mesmo até que nunca consumemos em vivência contínua esse sorrir e fazer sorrir para com a pessoa que também o sente em direcção a nós.

    E finalmente chego onde quero chegar na evocação do amor do 14 de Fevereiro deste presente ano. As pessoas tendem a pegar nas histórias dos reis e rainhas que envolvem filhos ilegítimos, ou relacionamentos adúlteros, e brincar com elas da forma como os portugueses brincam sempre com o que não é seu e envolve complexidade de sentimentos por parte de outros. Fazem-se piadas sexuais, diz-se em tom de gozo que fulano ou sicrano tinha sede e foi ao pote. Que se sentiu tentado e cedeu. É um prazer poderem brincar com isso, com a cedência humana dos outros, especialmente quando quem brinca nunca teve oportunidade para se poder sentir tentado sequer. Mas nunca se vê alguém sugerir que se calhar até existia um amor maior, o qual tentou ser vivido indo além daquilo que um dia foi contratualizado por obrigação.

    A história lega-nos que o Rei D. Pedro I teve amigas com que dormiu. Certamente que alguns brincarão com a situação. Mas contextualizando o dito – referência de menos 100 anos depois do Rei ter morrido – vamos muito além daquilo que as pessoas são capazes de viver: Este rei não quis mais casar depois da morte de Dona Inês (...) nem depois que reinou lhe aprouve receber mulher (...) de nenhuma houve filhos salvo de uma dona natural da Galiza que chamaram dona Tareija, que pariu dele um filho que teve o nome Dom João, que foi mestre de Avis em Portugal e depois rei, como adiante ouvireis. O nosso amado D. João I.

Busto do Rei D. Fernando II no Mosteiro da Batalha

    Do Rei D. Fernando II também dizem que D. Maria II serviu para procriar, e que Elise Heinsler serviu para se divertir. Quem vasculhe a correspondência dos mais próximos do Rei e de Elise Heinsler, perceberá que a diversão tem limites e que quem a queira não se sujeita à pressão social, às ofensas e discriminação, como aquelas que os dois passaram.

    Quem saiba que o Rei D. João I, o Rapaz da Praça dos Canos, teve filhos bastardos, logo dirá que o bastardo teve bastardos, sem compreender cronologicamente a existência dos mesmos, nem compreendendo como as regras do matrimónio o privavam de ter liberdade de escolha. Nesse caso e de forma egoísta, felizmente para nós hoje. As suas condicionantes geraram o casamento com D. Filipa (com as festas celebradas no 14 de Fevereiro), o que acabou por gerar muita da beleza da nossa história, do que podemos por Portugal encontrar, e do que podemos ainda em Sintra ver. 

    Amar é a libertação do espírito. Mas nem todas as pessoas são capazes de dar e receber. Não sentem o espírito de Deus a ser em si insuflado nem permitem que quem consigo vive o sinta. Todas as pessoas podem no entanto ter o escape de amar. De sentir. E quem sente, bom ou mau, fá-lo de involuntário modo. Mas fá-lo com o espírito de Deus, do Universo, em si insuflado, para se poder libertar. Mesmo estando dentro de um contrato que o levará a todos os momentos menos agradáveis.




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