“Callate e aquy o nom digas a nynguem” – foi o que, em Alfarrobeira, no ano de 1449, o Conde de Avranches disse a um criado o qual chorando, o informava que no seu lado do campo de batalha o Infante D. Pedro das Sete Partidas tinha caído morto. O Conde de Avranches, Álvaro Vaz de Almada, pretendia assim que os homens do Infante D. Pedro, os homens daquela que era vista como a facção rebelde, continuassem a lutar sem saberem que aquele que trajando uma cota de malha com uma cobertura de veludo carmesim e um capuz na cabeça, tinha caído com o coração atravessado por uma flecha.
O Conde de Avranches cairia algum tempo depois, segundo uns gritando ora fartar rapazes, segundo outros ora vingar vilanagem – certo é que a junção das duas suposições chegou-nos até hoje com a tão conhecida expressão é fartar vilanagem.
Do outro lado do campo de batalha, fazendo frente à facção tida como rebelde, encontrava-se o sobrinho do caído Infante D. Pedro, que naquele ano contava já 17 Invernos. O seu sobrinho tinha, na sua cabeça e desde o seu 14.º aniversário de vida, a sombra da coroa portuguesa: tratava-se do Rei D. Afonso V.
Este foi um dos episódios mais marcantes do Rei Afonso, o quinto de nome e título, e que se relaciona com o que neste mês aqui escrevo.
Quando o Rei D. Afonso V somou mais um Inverno, quando fez 18 anos, recebeu cartas do Rei dos Romanos, o qual mostrava interesse em casar com uma de suas irmãs, a qual tinha – aquando da abertura das cartas – 15 anos de idade.
Há que dizê-lo: este casamento tinha sido de antemão proposto perante um terceiro elemento: o Rei de Nápoles e Aragão. Este matrimónio serviria agora também de paliativo: o Papa recebera uma queixa da tia de Afonso V, reclamando que o seu irmão, o caído Infante D. Pedro, tinha ficado durante três dias com o seu corpo sem vida sobre a terra do campo da batalha de Alfarrobeira, à mercê das bicadas das aves de rapina. Para além disso, apesar de ter recebido a extrema unção por parte de D. Luís Coutinho, tinha o corpo ao fim desses três dias sido levado para lugar desconhecido.
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Fragmento de quadro da Imperatriz Leonor (de Portugal), pintado em 1468 por Hans Burgkmair. Actualmente no Kunsthistorisches Museum (Viena, Áustria). |
No ano de 1451, dois religiosos tidos na sua aparência como vulgares, são roubados e deteudos no Caminho de Santiago. É por mero acaso que o Bispo de Coimbra topa com o seu destroço, e os ajuda a chegar a Lisboa. Estes dois religiosos – como disse, vulgares no seu aspecto – eram afinal os embaixadores do Rei dos Romanos, que vinham selar o casamento desse com a jovem irmã do Rei de Portugal, D. Afonso V.
Já em Lisboa, são recebidos de forma muito afectuosa pelo Rei de Portugal e tratados quase como príncipes. O casamento é selado, e para que aquele dia fique na mente de todos em memória marcado, o Rei decide dar perdões judiciais a casos de difícil resolução, assim como o perdão das dívidas de muitos. Seguem-se as festas, inclusivamente com justas na Rua Nova em que até o irmão do Rei, o Infante D. Fernando, chega com os seus aventureiros, vestidos com guedelhas de seda fina como selvagens, em cima de bons cavalos vestidos e cobertos de figuras e cores de alimárias conhecidas...
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Miniatura representando Frederico III, com as armas de Portugal em baixo, tendo por cima dessas a inscrição Leonora imperatryx. Presente em manuscrito da Österreichische Nationalbibliotek. |
A viagem ainda a levou ao Norte de África, antes de cruzar o Mediterrâneo. A irmã do Rei D. Afonso V não conhecia o Rei dos Romanos. Estava a caminho da região de Itália para o conhecer, para se casarem presencialmente, para serem ambos investidos Imperadores.
No último dia de Fevereiro de 1452, em pleno Inverno, D. Lopo de Almeida – que acompanhava a futura Imperatriz – escrevia ao seu Rei, D. Afonso V:
...o dia, que a Senhora Vossa Irmã chegou à Cidade de Siena, saíram os da Cidade a recebê-la...
...e depois veio o Duque Alberto, Irmão do Imperador, com muita gente...
...e ao cabo de pouco veio El Rey da Hungria, e a cavalo lhe deu a dita Senhora a mão...
...chegámos junto com as portas da Cidade, e na entrada do arrabalde estavam a maior parte dos cidadãos a pé, vestidos de carmesim e escarlatas forradas de martas mui negras...
...por esta Cidade pintaram as armas do Imperador com as vossas: a porta, donde pousa vossa Irmã, estão [elas] pintadas...
A 16 de Março seria celebrado o casamento em Roma. Três dias depois, a 19 de Março, na mesma cidade de Roma, Frederico III [ex Rei dos Romanos] e Leonor de Portugal seriam investidos Imperadores do Sacro Império Romano-Germânico.
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D. Leonor de Portugal, Imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico, tendo à frente as duas filhas: Helena e Kunigunde. Iluminura de manuscrito do século XV, da Bayerische Staatsbibliothek. |
E de que forma se relaciona tudo isto com Sintra? Quem acompanhou D. Leonor, que na chegada a Siena, no encontro com Frederico III, tinha apenas 17 anos de idade? E que legaram esses seres humanos para a nossa história? Recontares que mostram ambientes diferentes daqueles que a limitada imaginação é capaz de recriar...
...este dia, acabadas as justas, foram cear, e acabada a ceia vieram todos por vossa Irmã, e levaram-na a casa do Imperador, e dançaram em sua sala quase uma hora, e veio colação [refeição] maior que a de Fernão Serveira, que com três patos dizia que se fartaria muito bem e lançar-se-ia na cama. O Imperador partiu-se da dança antes da colação e foi-se à sua câmara, e acabada a dita colação, levou El Rey a dita Senhora àquela mesma câmara com poucos, salvo mulheres, e acharam-no já lançado [e] vestido entre os lençóis; e tomaram vossa Irmã e lançaram-na na cama com ele também vestida, e cobriram-lhe as cabeças e beijaram-se, e feito isto...
...muito mais há para saber no próximo artigo do Jornal de Sintra.
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